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EU ME LEMBRO DE VOCÊ - CAPÍTULO II
Ao Meu Velho Rabugento, Eu Dedico toda a Minha Compreensão - Parte 1
Há muitas formas inesperadas de conhecer alguém que você ama em sua vida, e meu difícil Velho Rabugento foi uma delas.
Passou-se uma eternidade, pelo que parece.
Embora ainda conserve certos fragmentos, eu francamente sou quase incapaz de relembrar, completamente, como foi cada detalhe de minha vida, depois que deixei a antiga toca de Minha Pequena Senhora.
![](https://static.wixstatic.com/media/44bda1_2ad034548d4343ddb11a7e9b8f117513~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_901,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/44bda1_2ad034548d4343ddb11a7e9b8f117513~mv2.jpg)
Tenho certeza, fiz o que normalmente faço quando estou livre, e que também, após a morte de minha Primeira Humana, deixei aquela cidade. Eu já não era desejado, e, de uma forma lógica, se torna difícil conseguir comida quando toda a colônia de humanos - com sua egoísta onipotência – te reconhece e tenta imediatamente - nos casos mais leves, eu digo - te expulsar para longe, à pedradas.
Eu vaguei por muito tempo.
Descobri quão cruéis filhotes humanos poderiam ser, trancei entre dezenas de cidades, atravessei milhares de florestas em estado selvagem. Fugi de predadores, tomei banhos de sol, adormeci sob mantos estrelados, escalei prédios, sobrevivi me alimentando de pequenos animais. Lutei por territórios e vivi em pequenas áreas até decidir que poderia vagar mais um pouco. Ao final - embora negados objetos de desejo - os humanos acabaram por passar a ser apenas uma mera espécie quase presente em todo lugar, com o qual – em uma promessa subentendida, entre todos os demais seres vivos com cérebro desse mundo - dificilmente me aproximaria.
Eu estava sozinho.
Eu vi e conheci muito do mundo, algo que nunca pude fazer antes, vivendo um longo período em um estado semisselvagem, de boa vontade.
Éramos apenas eu e eu mesmo, ou uma ocasional e passageira presa.
Sozinho.
E foi maravilhoso.
Por motivos desconhecidos por mim naquela época - que não passavam de instintos - mesmo a companhia de demais membros de minha própria espécie, me era insuportavelmente desagradável.
Gatos não são uma espécie tão sociável, afinal. Ao menos, não no nível de um humano, por exemplo. Passar todo esse tempo de forma solitária foi, na realidade, muito confortável.
Mas… às vezes, quando me deitava para um preguiçoso banho de sol, ou enterrava um rato ou passarinho recém-caçado para guardá-los para mais tarde, uma sensação incômoda, um vazio, me atingia.
Não, talvez não um vazio.
Às vezes, essa sensação pinicava desconfortavelmente meus bigodes, ou me fazia sentir falta de um calor que, a muito tempo, não recebia.
Nessas horas eu me lembraria quão prazerosa era a mão de um humano para com seu "animal" amado, e quão cruéis essas mesmas mãos poderiam ser para aqueles que pouco lhe importavam.
Eu era relembrado desse calor.
Sabe, meu Velho Rabugento, embora eu tenha certeza que as vezes que você me acariciou possam ser contadas em uma pata, eu realmente gostaria que soubesse que, na verdade, agora sinto que você foi o calor para onde eu voltei, depois de muito, muito tempo.
Na verdade, a forma que nos conhecemos foi completamente diferente do que foi com a minha Primeira Humana.
Lembro-me que naquela época, tinha estabelecido meu território na parte traseira de uma vizinhança movimentada, em mais alguma cidade humana. Era uma espécie de estratégia excelente, já que do outro lado dali, ficava um lugar em que os humanos trocavam seu alimento e outras coisas por pedaços de metais e vice-versa.
Isso significa que, apesar de ter muitos humanos, também era fácil de se conseguir comida.
Particularmente ali.
Primeiro, era devido a um lugar, depois, foi devido a uma única pessoa.
Nessa vizinhança, havia um muro, e atrás desse muro, havia mais um lugar onde comida e objetos eram armazenados e vendidos em grandes quantidades. - Um armazém, em palavras mais humanas.
Era completamente fácil de entrar, e mais fácil ainda de roubar.
E esse armazém, era comandado por um velho humano insuportável.
Ele cheirava de uma forma desagradável desde a primeira vez que o vi - quando estava gritando com outro humano - e tinha um temperamento pior ainda.
Eu nunca me esqueceria desse cheiro ruim, que apenas eu seria capaz de notar.
O armazém não era tão grande, mas durante o dia muitas pessoas se reuniam ali. Aparentemente, o Velho vendia de sementes e grãos a temperos, tecidos e a parte que me interessava, carne.
O interior do lugar era escuro, e o Velho tinha o hábito de fechar a loja e, - apesar de literalmente vendê-las - só acender velas em um lugar específico depois que escurecia. - sem se importar se era nessa hora, que muitos humanos iriam à área para se drogar com algo chamado "cerveja".
Era a hora perfeita para evitar as janelas absurdamente bem lacradas e entrar pelo único buraco - feito por ratos - não tampado entre as vigas - que o Velho provavelmente não percebera - localizado nos fundos da loja.
Tecnicamente, deveria ter sido fácil de me esgueirar, já que o ambiente era perfeito para me camuflar. Eu era esquivo e ratos ocultavam meus barulhos - se estes ainda não tivessem sido envenenados ou mortos por uma ratoeira.
Mas, velho ou não, meu humano parecia compensar sua visão turva tendo "olhos de águia na nuca". Ele dormia no quarto dos fundos do armazém, onde sempre deixava uma vela acesa independentemente do avanço da noite. Como se fosse guiado por um instinto de predador, sempre que eu entrava sorrateiramente - independentemente da hora - ele levantava e patrulhava pelos corredores de seu armazém, procurando debaixo dos armários. Quando não encontrava nada - eu já rapidamente havia me esgueirado para debaixo de um armário já revistado - ele então voltava para seu quarto.
Mesmo sendo um gato, cuja furtividade estava em excelentes níveis, qualquer mínimo barulho como o roçar do meu pelo, imperceptíveis tilintares, ou então estalares de metal, após minha passagem rápida, o faria sair de seu quarto como uma fera. Armado com um pedaço de pau na mão, ele revistaria novamente cada mínimo pequeno canto escuro de sua loja, causando uma verdadeira confusão.
Ele não parecia procurar pelos ratos, embora se esforçasse muito para matá-los depois que os encontrava.
Finalmente, depois de muito esforço para despistar aquele homem irritante, eu era capaz de sair dali orgulhosamente coberto de glória, e com um grande naco de carne na boca.
Eu não era tolo, então apenas roubava seu armazém uma vez a cada cinco dias. Nos outros, eu roubava outras lojas ou caçava ratos.
Demorou um tempo, mas esse Velho, que parecia mais um animal com instintos à flor da pele, logo percebeu que tinha alguma coisa errada. Eu precisava de cada vez mais cautela quando ia roubar seu armazém.
Por vezes, sua patrulha, cada vez mais meticulosa, durava quase que tensas horas. Chegou ao ponto de ele passar a se sentar em uma cadeira, ao lado das carnes, com aquele pedaço de pau em seu colo.
Ele se tornou imprevisível. Depois de longos momentos de silêncio, ele poderia berrar algo aleatório ou bater com o pau na parede - me fazendo desesperadamente sufocar pulos ou sibilos em terrível susto - causando um estrondo. Depois que ele não ouvia nenhuma reação de seu armazém escuro, ele, então, voltava a se sentar em sua cadeira.
Por sorte, ele acabava adormecendo em sua cadeira depois da metade da noite.
No dia seguinte, depois que roubei um naco de carne dele, espiando do topo do telhado de seu armazém, estreitei meus olhos de prazer quando o ouvi gritando, xingando a Deus e ao mundo, o maldito gato que ousou roubar sua carne:
-EU VOU TE PEGAR SEU DESGRAÇADO!!!
- ele jurava aos céus - EU JÁ SEI QUE É VOCÊ SEU GATO NOJENTO!!! VOCÊ VAI QUEIMAR NO INFERNO!!!
Eu apenas ronronava uma risada.
… Confesso, que irritar aquele humano meio-cego se tornou meu lazer.
Surpreendentemente, o Velho tinha um filho, um jovem adulto. Ele chegou algum tempo depois que passei a "brincar" com o velho.
Ouso dizer que foi a chegada desse garoto que literalmente salvou a minha vida.
Depois de um tempo, cada vez mais furioso, o Maldito Velho começou a se tornar cada vez mais frenético.
Ele finalmente achou e tampou o buraco pelo qual eu entrava antes, então passei a entrar pelo telhado.
Ele tentou sair à noite para me caçar, e quando ficou de cama por ter pego um resfriado, limpei todos os pedaços de carne menores do armazém.
Ele rugiu muitas palavras de ódio no dia seguinte.
Depois disso, ele pegou um delicioso pedaço de carne e o expôs do lado de fora em um grande prato, se escondendo e achando que eu era tolo o suficiente para não adivinhar o que ele estava fazendo.
Enquanto ele estava distraído com o lado de fora, roubei outro pedaço lá dentro. Ele quase enfartou de raiva.
Ele sempre reclamava para seus clientes:
- Esse gato filho da mãe vai ter o que merece. A noite ele uivou no alto do muro para me provocar! Ele já está gordo! - Ele rugia - Ele já está gordo depois de tanto me roubar!
Os vizinhos passaram a falar que o Senhor Vinícius do armazém tinha um gato. Ele quase sufocava de raiva quando um chegava comentando que eu não estava tão gordo, e que tinha tentado me alimentar.
Um dia ele adotou um cão vira-lata, o ensinando, por um dia inteiro, a atacar se visse um gato. Depois, caiu de cama devido a alergia ao pelo do tolo canino.
Três dias depois, quando ainda estava mal, eu roubei vários pedaços de carne e me fiz amigo do cachorro, compartilhando com ele.
Ele doou o cachorro depois que nos viu adormecidos juntos no dia seguinte.
O Velho então passou a montar armadilhas, envenenou nacos de carne tentando me atrair, e até contratou pirralhos para me capturar.
Como protesto, passei a usar a frente de seu armazém como banheiro, fazendo ele uivar.
Entretanto, nunca fui tolo o suficiente para permitir que ele me pegasse dentro do armazém, roubando sua carne. Se eu o fizesse, então com certeza, ele finalmente, me pegaria, e então seria o fim para mim.
Mas, aconteceu.
Naquela noite, ele novamente estava patrulhando, enquanto me xingava com seu bastão na mão. Havia dois ratos vivos lá dentro também. Focado demais no Velho, eu vi o primeiro, mas não o segundo.
O rato guinchou quando me viu.
E o velho, já tomado pelo ódio por meses, não pensou duas vezes antes de, com toda a sua força, atingir o armário com o bastão. Com um terrível estrondo, o armário e tudo nele caiu em um rugido.
Assustado, eu saí de debaixo dele, correndo.
Foi quando a confusão começou.
Foi de fato, um momento de puro terror.
Eu nunca tinha corrido pela minha vida dessa maneira.
Não importa a velocidade que eu usasse, correndo em pânico, ele parecia estar logo atrás de mim. O sopro mortal de seu bastão tentava me esmagar com toda a sua força a cada balançar. Todas as saídas estavam bloqueadas. Ele não me deixava escalar para o alto.
O Velho derrubava estantes e armários ao atingi-los com seu taco, que quase caíam em mim, sem se importar se estava destruindo sua própria loja.
Eu corria em zigue-zague, escalava as paredes antes de ser derrubado, tentava me esconder sob entulhos de móveis, gritando com o bastão atingindo o exato lugar em que estava apenas um milissegundo depois, estilhaçando tudo.
Não havia para aonde correr.
O Velho gritava e xingava novamente e novamente, nunca cansando de me perseguir ou tentar me atingir.
Pessoas se reuniram do lado de fora, gritando e tentando arrombar a porta, achando que o Velho estava sendo atacado.
Finalmente, depois de tanto me perseguir, o Velho conseguiu me encurralar em um canto.
Quando seu bastão estava quase caindo para tirar minha vida, a porta foi arrombada, e um jovem humano entrou correndo:
-PAI!
Foi a última oportunidade que eu tive para salvar minha vida. Aproveitando a distração do estrondo da porta sendo arrombada, corri entre as pernas do Velho, disparando porta a fora.
O Velho correu logo atrás de mim, tentando me golpear.
O garoto rapidamente se moveu e o bloqueou.
Um berro doloroso ecoou pela noite.
E eu, pouco me importando que meu salvador havia sido atingido no meu lugar, disparei para as ruas, meu coração, por algum motivo, doía.
Talvez, porque estivesse acelerado demais.
Continua...
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Ver tudo7 Comments
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Senti toda irá do velho e o sufoco do gato!! Maravilhoso,!! ❤️❤️❤️❤️👏👏👏👏
Achei muito interessante este novo olhar. Parabéns pela bela escrita.
Muito lindo de tirar o fôlego!Parabéns querida Didi!
Vida longa aos gatos!Que show de narrativa!Quase fui atingida pelo taco do Velho Rabugento.