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EU ME LEMBRO DE VOCÊ │CAPÍTULO I

Foto do escritor: DIDI ANDRADEDIDI ANDRADE
Capítulo um: À Minha Pequena Senhora, Eu dedico toda a minha companhia

Minha primeira dona surgiu no início de minha tão longa vida, quando eu nem mesmo havia deixado totalmente a infância.


Já faz muito tempo, tanto que, hoje, já me é difícil relembrar detalhes que, num período antes de conhecê-la, eram tudo o que ocupava minha mente. Não me lembro mais do cheiro de minha mãe, por exemplo, e imagino que, para Minha Senhora, e até mesmo para meu eu infantil, seria uma dor imperdoável. Para um filhote, afinal, a existência de sua mãe é a coisa mais importante do mundo. Entretanto, ainda sou capaz de recordar que era a única coisa que eu mais ansiava em minha jovem idade: O gosto quentinho do leite, quando este tocava o céu de minha boca, as raras carícias de uma mãe ocupada por muitos filhos e o calor de seu ventre quando eu dormia.

E que também era a coisa que eu mais sentia falta, já que minha mãe decidiu que eu, meus irmãos e irmãs já éramos bons o suficiente para vivermos sozinhos.


Quanto a meus irmãos e irmãs, sinto dizer que não me lembro nem mesmo da quantidade ou da cor de suas pelagens, mas que também eram algo que atormentava constantemente minha cabeça, me preocupando se naquele dia eu teria meu jantar injustamente tomado ou não.


Minha pequena humana era de fato, uma senhora.


Dona de um rosto muito enrugado e amaciado, trajava roupas que naquela época, entre as relações complicadas dos humanos, seriam consideradas - por algum motivo que realmente não compreendo – valiosas. Ainda não sei dizer a idade dela, mas dessa vez, ainda posso descrever claramente o seu doce e desbotado olhar azul, e longo e confortável cabelo branco-amarelado.


Eu não sei dizer se seu pelo já foi, de fato, amarelo, quando ela era uma humana mais jovem, mas, novo como eu era, posso dizer que ela me fascinou à primeira vista.


Minha Pequena Senhora, a primeira imagem que tive de você é mais que o suficiente pra talvez, te deixar feliz.


Você foi como um mundo novo. Um triste prisma de luz que brilhou apenas para mim, quem te enxergou. E, quando nossos olhos se cruzaram, onde você provavelmente viu um miserável filhote de gato em um lugar imundo, eu enxerguei algo que foi grande o suficiente pra me atrair até você, para que te gravasse no fundo da minha alma.


O seu baixo e pequeno olhar, foi grande e alto o suficiente para me tirar das sombras.


Você já tinha sua coluna encurvada quando se abaixou e me pegou em seus braços.


Eu ainda não me esqueci da sensação de ser pego por suas mãos calejadas, enrugadas, quentes e frágeis, Minha Dona, jamais. Agora, eu me recordo do seu colo e do seu cheiro primeiro, quando tento relembrar minha mãe. Se dela restou apenas a sensação de calor, de você eu me lembro dos pequenos detalhes.


E essa parte da minha memória, minha grande humana, posso dedicar apenas a você, é tudo o que posso fazer.


A toca de Minha Senhora - cujos humanos têm a preferência para chamar de “casa” - parecia de certa forma, grande demais, e eu me lembro que de fato era. Quando entrei pela primeira vez, nunca passaria pela minha cabeça que era um ninho, se não fossem os móveis confortáveis e o cheiro de Minha Pequena Senhora.


Nós vivíamos sozinhos naquele imenso lugar, o que para mim, um recém-formado a sobreviver por si mesmo, era nada menos que uma dádiva. Naquela época, em minha mente, ficar sozinho apenas significava ser livre de irmãos problemáticos.


Às vezes, eu gostava de ficar sobre o beiral de uma janela alta enquanto tomava sol. Outros momentos, nos moles braços de Minha Dona, recebendo o calor do carinho, em que rapidamente me viciei. De quando em quando, afiava minhas unhas em almofadas que ela nunca se importava o suficiente para se irritar comigo. Eu dormiria ao seu lado, enquanto esta tagarelava banalidades apenas comigo, e então acabava em silêncio quando me via caído no sono, fazendo roupas que não pareciam ser para nenhum de nós dois. Eu miaria nervoso quando suas mãos envelhecidas começassem a tremer de novo pelo esforço de suas juntas, receberia uma voz rouca e amorosa como resposta. Eu exploraria a toca gigante. Em certos momentos, caçaria ratos ou pássaros para que ela visse que eu também poderia alimenta-la, me sentaria ao seu lado enquanto enterrava a comida que dava a ela no jardim.


Nós regávamos as plantas nos dias quentes, nos aconchegávamos quando chovia, saíamos para nos aquecer ao sol quando esse saía, dormíamos naquela cama enorme, comeríamos juntos na grande e vazia mesa, acordaríamos juntos e passaríamos todo o tempo na companhia um do outro.


Lembro-me que todo santo dia, nós íamos ao mercado, um lugar grande e cheio de humanos que trocavam comida por outro tipo de comida ou por simples pedaços de metais, algo que Minha Dona possuía muito. Minha Senhora era bastante exigente com o que ingeria, ou ao menos era isso que ela dizia quando íamos comprar verduras e acabávamos nos sentando para conversar com qualquer um que puxasse um assunto. Inocentemente, eu também constatei isso, já que ela se recusava a comer o que eu caçava e lhe trazia. A melhor parte, em minha opinião, era quando eu entrava na cesta dos legumes e ia dentro dela no caminho de volta.


Assim, nós passávamos toda a manhã falando com outros humanos, almoçávamos. À tarde, talvez por não existir outros humanos na toca grande demais, ela tagarelava sem parar comigo e em algumas noites, ela escrevia em papéis que enviaria para algum lugar no dia seguinte.


As repostas, que às vezes chegavam vários meses depois e tinham pouco mais que mínimas frases e promessas vazias eram o suficiente para que ela ficasse feliz por muito tempo.

– Mimi, sabia?


Ela dizia quando costurava – Eles disseram que estavam muito ocupados no ano passado, mas que todos vão vir nesse outono, quando as crianças entrarem de férias. Elas já devem estar tão grandes...


Pelo que ela sempre me dizia, ela era mãe de quatro “filhotes”, que já eram pais de mais nove. Meu eu já adulto, nunca entendeu de fato porque ela sentia tanta falta de seus filhos. – Quando a sua ninhada cresce, não é a hora de manda-los embora? – Foi o que minha mãe tinha feito comigo quando era mais jovem, afinal, para um gato, parentesco existe apenas quando você é uma criança.


Mas não parecia funcionar assim para a minha senhora.


Outono após Outono, eles nunca vieram.

E infelizmente, o tempo não foi muito generoso com a minha senhora.


Sua visão ficou ruim, e assumi a tarefa de guia-la em tudo com miados. Suas costas se curvaram cada vez mais sob um peso invisível, seus ossos se salientaram, seus movimentos se tornaram cada vez mais lentos e sua memória mais rasa. Por medo que caísse, também diminuí meus passos, não ousando sair do seu lado.


Mais tarde, à medida que observava o mundo, eu descobri que humanos são animais muito sociáveis. Chegavam ao ponto de ficarem muito tristes se estivessem muito tempo sozinhos. Para eles, um pai e suas crias mantêm laços por toda a vida, não importa a idade que alcancem.


Foi quando percebi que, na realidade – embora me tivesse completamente por toda a vida – Minha Dona parecia ser alguém muito solitária.


Às vezes, um ar muito triste a tomava quando ela andava pelos corredores vazios da grande casa.

De vez em quando, ela se apegava às cartas rasas de seus filhos, guardadas cuidadosamente na única caixa, daquela casa, que não me deixava tocar.


Quando a sua memória se tornou ruim, ela gritava o nome de seus filhos pelo casarão por algum tempo até se relembrar, ou escrevia novas cartas a cada poucos dias porque se esquecia que já havia enviado outra. Chegou ao ponto que passei a creditar que o único motivo pelo qual ainda ficava feliz ao receber a resposta de que viriam no próximo outono, era porque não se lembrava muito bem que havia recebido a mesma carta, no verão anterior.


Muitos vizinhos humanos passaram a se preocupar também, temendo que continuasse morando sozinha.

Mas ainda havia eu, sempre fomos apenas Minha Pequena Senhora e eu.


Em um inverno após outro outono em que não vieram, Minha Dona adoeceu.


Eu me deitei e apoiei meu queixo no ombro dela quando percebi que nesse dia, ela não conseguia mais sair da cama.


– Mimi, – Ela disse serenamente – eu estou um pouco fraca, acho que não vou conseguir dar o seu café da manhã de hoje.

Miei que estava tudo bem, afinal, ela também iria ficar sem o café da manhã dela, a não ser que finalmente comesse os passarinhos que lhe oferecia de vez em quando. – Bem, naquela época era inverno, seria difícil encontrar um passarinho.

– Mimi, –ela me acariciou por muito tempo – Você acha que eles vão vir no outono que vem?


Dessa vez, eu fiquei em silêncio, e ela riu.


– Eu sei. – A voz dela estava rouca – ...Você realmente não gosta deles.


Eles não merecem você, Minha Dona.

– Mimi... Por favor, não sinta mágoa deles. Eu te entendo, mas... Eles ainda são minha família.


Ela começou a contar novamente – Sabe, meu filho mais velho, Carlos, ele é muito inteligente. Eu o mandei para um internato para que aprendesse a cuidar dos negócios quando era mais novo. Quando ele cresceu, ele acabou indo para a capital, cuidar de tudo. Ele se casou com uma moça muito bonita, e vive com a família dele lá, ele é muito ocupado. – ela acaricia minha cabeça – Depois dele, eu tive duas filhas lindas, que acabaram se casando em duas outras famílias importantes. – ela ri – O meu filho mais novo era o mais apegado a mim, ele sempre me seguia para todos os lados...


– Oh, Mimi, você o ouviu chorando? Ele ainda só tem dois anos, ele morre de medo de insetos, já pedi para Carlos não fazer isso...


Na realidade, seu filho mais novo já era um adulto. Pelo que ela me contou, ele seguiu seu irmão para a capital depois que cresceu. Não houve mais notícias dele depois de duas estações.


– ...Mimi, você acha que eles ainda se lembram de mim?


Optei em permanecer em silêncio, apenas lambendo seus dedos, ela se virou lentamente em minha direção:


– Mimi, prometa-me que vai se cuidar, sim? Estou um pouco preocupada com você, após tantos anos ainda não envelheceu depois de se tornar adulto... Você é tão dependente... Ao menos ainda sabe caçar ratos, então acho que vai ficar tudo bem. – Ela ri novamente quando eu mio.


– ...Eu sinto tanta saudade... – ela sussurra – Eu não os vejo a tantos anos... Eu só queria poder vê-los mais uma vez. Nessa carta, eles disseram novamente que viriam no próximo outono. Eu realmente quero poder estar lá...


Lentamente, ela caiu em mais um sono profundo e, lentamente sua respiração se tornou mais rasa. Até que, em algum momento seu peito parou de subir e descer.


Minha Pequena Senhora não precisaria sentir mais saudade, então.

Eu quase não saí do quarto depois disso, levou três dias para que os humanos que moravam na casa ao lado notassem que havia algo de errado e invadissem o casarão. Por algum motivo, as mulheres gritaram horrorizadas quando me viram ao lado dela e os homens se tornaram agressivos ao ponto que precisei pular a janela. Depois disso, fui incapaz de ver novamente minha Pequena Senhora. As pessoas passaram a gritar, jogar coisas e me amaldiçoar toda vez que me viam, querendo que eu saísse.


Eu não aceitei ir embora. Ainda não.


Acabei passando a viver no jardim do grande casarão.


A casa foi decorada de preto, uma caixa grande de madeira, onde seu corpo estava, repousou no meio. Pessoas entraram e saíram.


Fofocaram sobre a Minha Dona e sua família, rezaram, choraram em cima da caixa de madeira, julgaram que fiquei com o corpo dela, chamaram-me de praga amaldiçoada. No dia seguinte, do jardim, pude observa-los levarem a grande caixa de madeira para um lugar que eu não sabia. Fiquei na casa.


Depois disso, como nenhum humano mais ousou entrar ou mesmo se aproximar por medo de mim, pude voltar a vagar pela mansão ainda mais vazia.


Eu não sei quanto tempo depois, mas um dia, ainda no inverno, quando estava no jardim, eu vi um novo grupo de humanos se aproximando. Não eram os vizinhos, já que nunca os tinha visto na vida. Vestiam trajes diferentes das pessoas da cidade. Entre esses grupos de homens e mulheres – poucos sem medo – pude ver cerca de nove jovens adultos ou crianças ousadas.


– Era aqui que a avó morava? Que casa grande! – disse um dos filhotes mais jovens.

Então eles não precisavam esperar até o Outono para vir.

– Alfredo, fique perto! Você não ouviu o aviso dos vizinhos?! – uma das mulheres gritou.

– Mamãe era tão débil para com os animais – Um homem de meia idade, o mais velho dali, suspirou – Que acabou trazendo esse tipo de coisa pra dentro da própria casa – Uma das mulheres retirou um terço enquanto o homem continuava a falar – Espero que ele não tenha quebrado nada lá dentro.

– Mamãe, a casa está mesmo amaldiçoada? O gato amaldiçoou? – perguntou outra criança.


Não, eu amaldiçoo vocês.

Eu sei que isso é quebrar minha promessa para com você, Minha Pequena Senhora, mas hoje eu ainda os amaldiçoo.


Já foi suficiente espera-los.


Eu dei as minhas costas e fui embora.




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7件のコメント

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Carmen Regina Santos
Carmen Regina Santos
2022年3月03日

Muito bom ter vocês da Geração Z neste Blog. Tenho certeza que será um sucesso! Bem-vinda!

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Carla Kirilos
Carla Kirilos
2022年2月08日

Muito bom ver uma nova geração de talentos surgindo aqui no Bendita! Avante, Didi!

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Indie -_ -
Indie -_ -
2022年2月08日
返信先

Obrigada gatinha❤️

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Estética e EFT com Helenita Bretas
Estética e EFT com Helenita Bretas
2022年2月04日

Simplesmente maravilhoso!!!❤️❤️👏👏👏👏👏

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Indie -_ -
Indie -_ -
2022年2月08日
返信先

~(˘▽˘~)(~˘▽˘)~

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Beth Bretas
2022年2月03日

Que talento!Que sensibilidade!Que visão profunda sobre relacionamento....Maravilhoso texto.!

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Indie -_ -
Indie -_ -
2022年2月08日
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◑ω◐

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