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EU ME LEMBRO DE VOCÊ - CAPITULO XI - PARTE 1

Foto do escritor: DIDI ANDRADEDIDI ANDRADE

UM TESOURO EM UMA ÁRVORE - PARTE 1


Sinceramente, quanto mais você vive, mais coisas estúpidas lhe vêm à mente. 


E acredito que eu, como uma velha alma cansada, tenho o direito de falar isso mais do que qualquer outro ser vivo. Quanto mais antigo você se torna, mais você passa a se importar com… pequenas coisas.



Breves particularidades, por exemplo, como aquele dia tão belo lhe parecia tão estranhamente pesado, graças a alguma coisa que lhe abafava o peito.


Curtos pormenores de notar detalhes ridículos de apenas momentos, aqueles toques que não aconteciam mais, aquelas interações que se tornaram mais fardadas.


Olhares, veja só, apenas olhares se tornam uma risível preocupação quando você vive demais. Olhares que já nem mesmo viam os pássaros que tanto amaram.


Enxergavam apenas papel. E rabiscos.


E mesmo os rabiscos aborreciam por não serem mais os mesmos. O que antes me lembravam asas, agora se formavam em uma maldita torre cinzenta. 


Não eram mais desenhos de sonhos ou metas, não.  Canarinho parecia há muito ter realizado um sonho que almejava desde a infância, e isso não lhe pareceu mais tão importante.


Vê? Apenas bobagens absurdas.


Peso no peito, olhares, metas, sonhos?


Gatos não sonham.


Muito menos, nossos filhotes.


Isso é coisa dos humanos.


Não sou um humano, cujo o conforto de uma evolução sem predadores, lhe deu o privilégio de desejar mais além da vida. Uma espécie que se viu tão confortável em sua seleção que se excluiu do resto mundo.


De fato, quando não precisa se preocupar tanto com sua próxima refeição, sua sobrevivência ou seu abrigo, talvez sua mente tenha mais espaço para pensar em outras coisas estúpidas, como sonhos.


Sonhar em fazer aquela torre odiosa voar pelos ares.


Sonhar em estar com Canarinho.


Desejar que o admirassem.


Desejar que seu humano finalmente notasse, novamente, os pássaros que você lhe trazia.


Se preocupar em fazer com que os outros te invejassem.


Se preocupar que aquele homem idiota tirasse aqueles olhos do papel e voltasse a lhe dar um carinho.


Sim, eu sou um gato.


Gatos não deveriam se preocupar com essas besteiras.


As preocupações de um gato devem estar como as preocupações de um gato: se algum idiota de sua espécie ousou invadir seu território, se suas necessidades do momento são capazes de ser nutridas.


Gatos se preocupam com a caça, com seus banhos de sol, com seus predadores, seus  ninhos e sonecas.


Se for uma gata, ela se preocupará com as crias, se for mãe. Se for um macho comum, ele se importará em encontrar uma gata, se quiser.


Eu não sou uma pessoa.


…Então, quando me vi tão parecido com essa patética espécie?


Quando além das sonecas, dos sóis e das comidas, eu passei a me importar com sonhos, metas e sentimentos?


Foi desde a infância, com Minha Pequena Senhora? Com Meu Velho Rabugento? Com Girassol?


É claro que eu já havia notado que não me parecia tanto com os demais membros da minha espécie, mas quando a mudança foi tão aparente?


Desde sempre?


Ou agora, quando a obsessão de Canarinho por vingança e, graças a isso, a pouca atenção que passou a me dar, passaram a incomodar?


Desde que decidiu que faria a Grande Torre Torta em si alcançar as nuvens, Canarinho se viu trancado em papéis, sem solução alguma.


Esses dias viraram semanas* e as semanas se tornaram meses*.


De apenas algumas horas rabiscando, Canarinho passou a ficar o dia inteiro, pulando refeições, saídas e mesmo o sono.


As pausas para falar comigo ou mesmo me dar alguma atenção se tornaram mais ralas.


Não é que ele me ignorasse, Canarinho ainda era Canarinho, ele ainda falava comigo, mesmo que fosse apenas sobre seus devaneios, ele também me acariciava quando me deitava na frente dele e os exigia.


Mas, tirando esses momentos, os olhos de Canarinho estavam no papel.


Sempre naquele maldito papel.


Mesmo os pássaros que caçava para ele passaram de presentes a incômodos em cima da mesa, o atrapalhavam a escrever.


Ele não precisava mais de asas, ele dizia, ele precisava de uma solução para fazer toneladas* de pedra flutuarem.


Então eu parei de lhe dar passarinhos e passei a lhe dar meus ratos. Ao menos isso se tornou eficaz para levantá-lo daquela cadeira.


___________________

Semanas: Uma contagem de tempo humana, se passa uma semana quando o sol nasce sete vezes.


Meses: a soma de quatro semanas 


Toneladas: algo muito, muito pesado.






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3 Comments

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Guest
Mar 16, 2024
Rated 4 out of 5 stars.

“Quanto mais antigo você se torna, mais você passa a se importar com… pequenas coisas.” Sempre penso sobre isso e me pergunto: Por quê? 👏👏💋 Carla

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Jefferson Lima
Jefferson Lima
Mar 12, 2024

As coisas se tornam estúpidas pelo envelhecer da alma (neste caso, uma visão míope da existência), ou a interferência do ser humano, que se acha acima do bem e do mal, faz com que todas as demais se tornem absurdamente estúpidas? Consequentemente, este nosso desequilíbrio acaba por desestabilizar a própria essência dos demais seres. Que pena que seja assim! Que necessário refletir sobre isso!

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Guest
Mar 12, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

Fantástica reflexão!

“Sinceramente, quanto mais você vive, mais coisas estúpidas lhe vêm à mente.”

Que na verdade são constatações do quanto damos importância às coisas estúpidas.

Namastê!


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