EU ME LEMBRO DE VOCÊ - ANTES DAS RUÍNAS - PARTE 3
O Sol ainda amanheceu no dia seguinte como se nada tivesse acontecido, e assim também foi com meus dois humanos.
…Ou quase.
Óculos Fundos se estabeleceu oficialmente como nosso vizinho e eu agora tinha duas tocas declaradas como minhas.
…Praticamente.
Óculos Fundos não passava muito tempo em sua própria casa, pra ser sincero, nem mesmo para dormir. Em grande parte das vezes ele estava com Canarinho, em nossa toca.
Bem, era mais espaço para mim.
Eu adorei.
Óculos Fundos, aquela alma gentil, sabendo que eu passei a frequentar seu lar e protegê-lo de pequenos animais indesejados, sempre manteve uma abertura para que eu entrasse em sua toca o quanto eu quisesse. Ele deixava até mesmo comida quando não me via. Um anjo.
A mudança de Óculos Fundos também me trouxe mais um pouco de alívio.
É verdade que eu e meus humanos passávamos muito dos nossos tempos juntos, mas também havia momentos em que os deixava sozinhos para fazer a minha ronda habitual. Óculos Fundos era confiável o suficiente para deixar Canarinho aos cuidados dele e por isso eu era grato.
Claro, eu não necessariamente deixava de fazer minhas rondas antes, mas ter óculos Fundos foi como tirar um peso de meus ombros.
Eles se trancavam por horas, discutindo temas e teorias que me pareciam tão complexas que eu não entendia nada.
Mas… infelizmente, nem tudo são camundongos.
Depois de recusar a proposta da Torre, Óculos Fundos perdeu muito de seu patrocínio, ele se viu sob a difícil decisão de ter que encontrar um emprego, e essa verdade pareceu chocante para os dois, ele e Canarinho.
Canarinho se trancou em sua própria redoma depois que saiu de sua tristeza profunda para aquela maldita obsessão. Graças a ela, ele mal saia de casa, e quase não precisava, o que ganhava de seu irmão generoso era mais que o suficiente para viver ali.
Para ele, a realidade dos subúrbios parecia distante. Canarinho não verdadeiramente convivia mais com as sarjetas, suas velhas amigas.
Nem com as pessoas mal intencionadas.
Ou com os possíveis casos de miséria ao virar da esquina.
Ele também não apanhava mais nas ruas nem era roubado.
Era como se ele quase tivesse se esquecido disso…. Mas, Óculos Fundos, aquele menino de ouro, se viu descobrindo isso na marra. Empregos não eram tão fáceis de conseguir por lá, ele encontrou um depois de muita procura, em um lugar bem longe, as horas de ida e volta eram exaustivas.
De certa forma, assim como Canarinho, Óculos Fundos também tinha se criado em sua redoma, a Torre Torta e seus privilégios não notados pareciam fazer isso com todos. Era verdade que ele era uma grande mente muito admirada lá dentro… mas ninguém se importava com essas coisas aqui fora.
Principalmente se fosse um desses grandes gênios das bocas do povo, tão diferente das pessoas comuns, que agora tinha se negado ao privilégio que tinha. Ter sido capaz de ler o livro de alguém ou não não fazia a menor diferença na hora do trabalho pesado ou de pôr a comida na mesa.
Assim que saiu de sua redoma, a realidade bateu, com força, bem no meio da cara de Óculos Fundos.
E como aquela alma gentil poderia suportar isso? Ele não estava preparado.
Ele não estava preparado para as visões que teve no subúrbio. Não estava pronto pra surra que levou quando tentou ser gentil com um estranho. As horas de trabalho exaustivo eram terríveis. O cansaço parecia consumi-lo.
Nada o preparou para a dura realidade de uma toca sem muitos confortos, de viver ignorando a realidade de vizinhos em situações piores, de descobrir que seus conhecimentos, aquilo pelo qual trabalhou duro toda a sua vida, pelo qual ele tanto se orgulhava, pareciam tão valiosos quanto o vento, visíveis como o ar.
Óculos Fundos não estava pronto para tudo isso. Nem Canarinho parecia preparado para notar.
Não se esqueça de deixar um comentário, e seguir nossas redes sociais:
Então Óculos Fundo descobriu que na vida, muitas atitudes nossas podem não fazer a diferença.
Namastê!