EU ME LEMBRO DE VOCÊ - CAPÍTULO V
Chovia, naquela noite, sob o tule de prata - final parte 1
Parando para pensar, eu fiquei ansioso, naquele maldito dia.
Não o tipo de ânsia boa, pelo contrário, não era aquela antecipação que eu sentia antes de ganhar minha refeição de Girassol, ou aquele gostoso friozinho no ventre antes de receber do Meu Velho nosso jantar secreto da meia noite.
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Não.
Era uma inquietação cruel, um emaranhado de angústias nauseantes, que se reviravam em nós preocupados dentro da minha alma, arrepiando meu pelo de uma forma que nem mesmo lambidas o abaixariam.
Eu senti isso quando um predador maior encontrou minha toca, em meu período selvagem. Foi essa sensação que me fez não voltar e ir passar a noite em outro lugar. Só descobri sobre o predador quando senti seu cheiro em meu ninho do dia seguinte.
Eu senti essa ansiedade quando entrei em um bairro de alguma cidade, quando vagava. Ela me fez não ficar mais que uma noite naquele lugar. Pouco tempo depois, ouvi humanos falando sobre como estavam sendo encontrados corpos de gatos naquela área.
Eu senti isso sempre que fosse cair uma tempestade forte demais. Ela me fez procurar abrigo em áreas mais altas.
Ela me levou a ir de alguns lugares, a ficar em outros, me alertou sobre desastres, me fez evitar locais desagradáveis.
Graças a essa sensação, eu fugi de locais onde humanos passavam fome ao ponto de caçar qualquer outro animal. Eu escapei de áreas onde a doença abatia cada sopro de vida. Eu saí antes que a falta de chuva daquela estação fizesse todas as presas irem embora. Eu me livrei de desastres, descobri bons territórios para morar, permaneci vivo.
Não era aquele friozinho inocente que eu tinha com os dois.
Era gelado.
Eu estava com essa aflição desde que tinha acordado naquela manhã.
Entretanto… era aquela sensação, mas era… diferente. A que me atingia naquela hora não parecia ser direcionada exatamente a mim.
O problema é que eu não sabia quem, ou o porquê.
Foi o suficiente para me colocar em um estado insuportável de agitação.
Eu andava pelo armazém inquieto, não parando nem mesmo quando meu Velho Rabugento se tornou irritado pelas minhas ações.
Estava me sentindo tão incomodado que recusei os toques de Girassol, e até mesmo o café da manhã preparado por ele.
Era impossível ter qualquer ânimo para comer.
Algo ruim ia acontecer. - Era o que minhas entranhas pareciam gritar no meio de um gelo doloroso - Fique quieto, fique em casa.
Infelizmente, ninguém, fosse Girassol ou muito menos Meu Velho, pareceu entender o motivo de eu agir assim.
Pra piorar, aquele era um dia irritantemente agitado.
Todos os humanos que entravam no armazém, na maioria das vezes, apenas levavam as coisas que tinha lá dentro embora. Naturalmente, a cada semana, era necessário que alguém recolocasse o que foi tirado.
E para isso, Meu Velho, acompanhado do filhote, precisava acordar muito cedo para ir buscar as coisas de outros humanos, em uma cidade vizinha.
Girassol sempre se oferecia para ir no lugar do Velho e que este descansasse, mas o pai sempre o recusava.
Meu Velho parecia gostar de ir comprar novas mercadorias, de verdade.
Nesses dias de reposição, Girassol e o pai decidiam fechar o armazém, e eu normalmente ficava, vigiando tudo.
Mas eu estava agitado naquela manhã.
Fique em casa, fique em casa. - eu miava enquanto me colocava na frente deles.
A sensação está aqui.
Então, fique em casa.
– O que há de errado com esse bicho?! - Rugiu Meu Velho, irritado quando barrei sua passagem para a porta, e então mordi a barra de sua calça quando este me ignorou. - Me deixa em paz Animal! - Ele sacudiu a perna.
– Pai, pai, pai. - Girassol rapidamente o acalmou - Acalme-se com Argo sim? Ele está estranho hoje. Pode estar passando mal.
– E o que eu tenho a ver com isso? - Meu Velho reclamou, disfarçando um olhar de preocupação que mandou para mim- Faça ele me soltar primeiro!!
Girassol teve que me puxar para me soltar.
Rugi.
– Calma! Calma! - Girassol alisou meu pelo - Vamos Argo, bom Argo, não seja tão rabugento quanto nosso pai sim? - Ele beijou o topo da minha cabeça enquanto eu tentava descer. - Seja um bom menino e cuide do armazém.
– "Nosso pai"? - Perguntou o velho com desprezo, novamente irritado - Tome vergonha na cara! Eu não sou pai de bicho nenhum! - Ele bufou - me lembre de trazer aquela vassoura que a Sra. Alieda encomendou.
– Sim pa-.. Argo!
Quando vi Meu Velho pondo os pés para fora, me contorci tanto que me soltei. Corri novamente para a frente do Velho Humano, paralisando ali.
Girassol piscou, surpreso.
– Argo?
Fique em casa, fique em casa. - Miei.
Girassol olhou incerto para o pai novamente:
– Será que ele realmente está doente?
Meu Velho resmungou:
– Ele tá ótimo pra estar doente, - Ele tenta desviar de mim - Deixa esse bicho em paz, vamos logo.
Não!
Corri de novo.
Meu Velho franziu a testa:
– Mas o que diabos esse gato cismou agora?
E se algo acontecesse com Meu Velho se ele saísse?
Não saia de casa, não saia de casa.
A sensação dizia para não sair de casa.
Girassol fez um som com a garganta.
– Isso… Pai, - Ele colocou a mão no queixo - talvez… Argo não queira que você vá?
– Até parece!! E como se eu fosse satisfazer um gato!! - Ele lutou pra passar por mim, sem sucesso.
Girassol riu, até Meu Velho começar a ofegar tanto que quase caiu pelo exercício.
– Pai!
– Esse maldito joelho…
Girassol riu.
– De novo seu joelho? - Ele balança a cabeça. - Vê? Acho que Argo está certo.
O Velho riu de raiva.
– Agora eu sei que você fez complô com esse Maldito Gato! - Ele rugiu - Eu vou repor o estoque!
– Pai, pai, pai - cheio de maneiras doces de persuasão, Girassol o guiou até um banco para que se sentasse - Você mesmo não reclamou como seus joelhos estão incomodando? Por que você não fica dessa vez e deixa tudo comigo?
Ele arregalou os olhos:
– NUNCA!!
Girassol ainda tinha toda a paciência do mundo:
– Pense comigo papai, sempre que você volta, você reclama horrores do quanto seus joelhos e coluna doem, certo? A viagem sempre acaba com o seu corpo. - Ele se ajoelha e encosta a cabeça na perna do velho, como um cachorro tolo - Por que você não fica dessa vez, e me dá um voto de confiança?
Meu Velho franziu a testa, Girassol começa a beijar suas bochechas.
– Pense que eu vou assumir o armazém um dia, sim pai? - Ele usou aquele tom doce que fazia meus pelos levantarem. - Então pense nisso como um teste para mim. Eu vou fazer tudo direitinho, eu prometo….
Ele continuou beijando as bochechas do velho, até que este desistiu, sua expressão carrancuda desmanchando em desamparo.
– O que eu faço com você?
Girassol comemorou, mas eu miei mais alto:
Não! Fique em casa!
Mas daquela vez não adiantou nada. Não importasse o tanto que eu barrasse a passagem de Girassol, no final, ele não desistiu:
– ARGO! - Ele rugiu, a primeira vez que realmente perdeu a paciência comigo.
Eu congelei.
Girassol suspirou, respirou fundo, antes de pegar no colo e me colocar em um murinho baixo.
Não vá. - miei.
– Agora não, Argo, ou eu realmente vou me atrasar. - Ele fez um carinho apressado em minha cabeça. - Desculpe por gritar. Prometo que volto rapidinho, ok? E vou trazer algo gostoso pra você!
Eu não queria nada gostoso, apenas… - tombei minha cabeça, olhando para aquele humano que brilhava tanto quanto um raio de sol.
Ele realmente queria ir tanto assim?
Miei novamente, fechando meus olhos, e focando na sensação de seus dedos em minha pele, sob o pelo, aproveitando o breve segundo prazeroso.
Ronronei.
Girassol sorriu, me dando um último beijinho, arregalando os olhos quando também o lambi.
– Eu volto essa noite. - Seu sorriso cresceu mais ainda.
O encarei.
Nada tinha o toque e o sorriso mais preciosos que Girassol, e, dessa vez, no topo do murinho, eu tentei gravá-los no fundo da minha essência.
Por que a sensação pediu que eu fizesse isso.
___________
Diferente do que estava sentindo de manhã, agora eu estava calmo.
E diferente do que tinha prometido, já era madrugada, mas Girassol não tinha voltado.
Meu Velho não tinha conseguido dormir, em preocupação. Me pergunto se ele também, como um humano, sentia a sensação ruim que tive naquela manhã.
Normalmente ele esperaria, calado, confiante, com apenas uma vela para iluminar sua visão, mas dessa vez ele andava de um lado para o outro, o armazém tão iluminado quanto o dia.
Não houve lanchinho da meia noite naquela madrugada.
Mas, eu também não estava com fome.
– Acha que ele está bem? Ele está demorando demais… - Meu Velho congelou, antes de rir de si mesmo com zombaria. - Veja só… agora eu estou falando até mesmo com um gato…
Não que ele não falasse, mas dessa vez, eu também tinha perdido a vontade de brigar.
Eu me sentia… letárgico.
Meu coração pesado por uma enorme tristeza.
Uma tristeza tão grande que me fazia ficar quieto, sem a menor das vontades de me mover.
O tempo passou. Lentamente. Tortuosamente.
Meu Velho não relaxou por um único e mísero segundo, cada vez mais preocupado, cada vez se importando menos que estava falando com um "gato estúpido".
A lua se moveu, o sol começou a nascer, minha tristeza cresceu e Girassol não voltou.
Finalmente, não aguentando mais, meu velho pegou um casaco:
– Eu vou...
Batidas urgentes soaram na porta:
– VELHO AM! VELHO AM! ABRA A PORTA! - Cada tapa, um mais forte que o outro contra a madeira, fizeram a porta chacoalhar e tremer. O som, tão horrível, que parecia bater em meu peito também.
Finalmente, me movi, pulando da prateleira que estava, correndo atrás do velho que correu como um louco para a porta.
Urgente.
Desesperado.
Ele abriu a porta mais rápido que podia.
As batidas cessaram.
Um homem velho, amigo de Meu Velho, estava parado na porta, ofegante. Seus olhos opacos, assim que viram Meu Velho, se encheram de lágrimas.
Meu Velho parecia outro humano, quando agarrou o braço do outro velho com a força, as mãos trêmulas:
– O-O que aconteceu com meu filho? - eu nunca tinha ouvido a voz dele tremer. - Fale… FALE!!
O outro velho começou a chorar:
– Parece que houve uma confusão na praça entre os fornecedores… - Ele começou a soluçar, Meu Velho o agarrou com mais força - Uma briga. Mini AM tentou intervir mas ele foi empurrado pro meio da rua na confusão… - Meu Velho começou a chorar - Parece que um cavalo de uma das carroças que passavam na rua se descontrolou e… quando Mini Am caiu… ele… - O homem não conseguiu falar mais - Velho Amigo, eu… eu sinto muito…
Meu Velho caiu de joelhos, sem forças, quando as lágrimas corriam por seu rosto antes gelado.
– Não… por favor Deus… Não.
Continua...
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
Será que ele morreu? ❤️
Será que Girassol morreu?!Espero que seja apenas um susto e que tudo fique bem.
Amém!