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EU ME LEMBRO DE VOCÊ - CAPÍTULO VI

Foto do escritor: DIDI ANDRADEDIDI ANDRADE
Chovia, naquela noite, sob o tule de prata - final.

No dia seguinte, ao raiar de uma manhã indiferente, aconteceu exatamente o que ocorreu quando Minha Pequena Senhora se foi, também.


Pessoas vestiram-se de preto.


Um homem pregou sobre algum Deus.


E então choraram, ou conversaram, ou rezaram, ou lamentaram a morte de alguém jovem demais.


Uma morte repentina e cruel o suficiente.


Na realidade, além do fato de que eu observava ali, e não atrás de arbustos, não foi muito diferente do de minha Primeira Dona.


Foi quando percebi que humanos também tinham seus próprios e estranhos rituais para seus mortos.


Como o preto – embora nunca tenha entendido o motivo de escolher uma cor preta.


Como colocar o corpo de Girassol em uma caixa de madeira de formato estranho – lacrada, diferente do de Minha Dona, que só foi fechada depois.


Chorar, ou chamar aquele homem estranho para falar de seu Deus.

Ou encher tudo com flores de cheiro forte demais.


Falavam, sobre como era uma pena, sobre como ele tinha um futuro pela frente.


Ele era tão bondoso, - Diziam - tão cheio de vida, por que morrer agora?


Então, comentavam sobre uma ou outra moça que gostava dele.


Sobre como ele era quando filhote.


O quanto iam sentir saudade, como ele era uma boa pessoa… não havia muita exceção.


Além de uma.


Destoante de todas as demais vozes. A única em silêncio, incapaz de dizer a menor das queixas mais primitivas de dor, amortecido.


Meu Frágil Velho estava lá.

Sentado em um banquinho e agarrado à caixa gelada que tinha o corpo de seu filhote como se isso fosse a sua última faísca de vida.


Ele não notou o frio da caixa, ou não parecia se importar. – Eu sabia que era gelada, a havia tocado com o focinho – Meu Velho não respondeu as condolências, não se levantou para o homem que falava de um deus, não gritou comigo quando me viu, não se importou que subi no tal caixão – Aparentemente, os demais humanos acharam um absurdo.


Ele apenas abraçou a caixa, atordoado, amortecido, olhando para o nada, por muito, muito tempo.


No dia seguinte, antes do nascer do sol, o amigo que o avisou da tragédia que aconteceu com Girassol, pediu suavemente que ele soltasse seu filho, era hora de enterrá-lo.


Foi a primeira vez que vi Meu Velho se movendo desde que abraçou o invólucro do corpo de seu filhote.


Como se perdesse a alma, ele cambaleou quando se ergueu, recusando a ajuda do amigo ou o outro macho humano que se ofereceu para levar seu filho no lugar dele.


Me lembro que depois disso, todos caminharam por algum tempo, carregando a caixa para então finalmente colocá-la em um buraco cavado entre formas estranhas – marcas – de madeira.


O Sol terminou de nascer quando o mar de pessoas cobriu o buraco com terra, e continuou a avançar enquanto eles, como se fugissem daquele ar pesado e mórbido, foram se dissipando lentamente.


No final, só restou meu Velho Rabugento – além de mim – congelado, encarando a forma de madeira que marcava o lugar que seu filho foi enterrado.


Miei por um longo tempo, mas ele parecia incapaz de ouvir.

Continuou parado, mesmo quando o Sol cresceu para o alto do céu.


E então, Meu Velho caiu de joelhos.


E começou a chorar.


O Sol, – Impiedoso e quente, tão diferente de meu Girassol – foi a única verdadeira testemunha de nosso luto.


E dos urros de dor que Meu Frágil Idoso finalmente foi capaz de soltar.


Nada nunca mais foi o mesmo.


Não havia mais Girassol.


Nem o sorriso mais bonito do mundo de Girassol.


Nem seu ar amoroso.


Sua voz doce.


Seu carinho macio.


Sua comida deliciosa.


Seu cheiro.


O ato de dormir com ele e não em uma cama gelada.


Não tinha mais um Girassol para ajudar o Velho.

Pra sorrir para nós dois.


Para importunar o pai.


Para me irritar.


Nem para apaziguar nossas brigas, embora isso não fosse mais necessário.


Meu Velho não se importava mais em brigar.


Como agora não havia Girassol, era ele que cuidava das coisas, e de mim, mas ele parecia ter perdido o gosto de tudo.


Mesmo seu sagrado armazém, já não era mais cuidado por ele como antes.


Ele passava o dia sentado, olhando, lembrando, sangrando, chorando o mais silenciosamente que podia a qualquer momento, ou quando colocava a cabeça no travesseiro ou via algo que lembrava o filho.


Girassol era seu chão, mas agora nós não tínhamos mais ele.


Havia apenas eu, só eu.

Mas não acho que ele tinha qualquer energia para realmente perceber isso.


Meu agora Frágil Velho, estava afogado em um luto cruel.


Não que ele não estivesse cuidando de mim, apenas que… Ele não parecia mais ser capaz até de cuidar de si mesmo.


Ele falava sozinho, ou comigo, lembrando de seu filhote perdido, às vezes fazendo o que ele gostava de fazer antes de despencar em lágrimas.


Abraçava suas roupas em silêncio.


Acariciava suas coisas como se fossem tesouros.


Me olhava em silêncio com nada além de dor nos olhos, às vezes, chorando.


Cozinhava as comidas que o filho gostava, e servia três pratos à mesa, um para ele, outro para mim, e mais um para a cadeira vazia que se sentava Girassol.


Ia à lápide – onde o filho foi enterrado – todos os dias, em silêncio, sem forças pra chorar. Talvez, contando o que tinha feito no dia. Talvez, lamentando em sussurros que era difícil demais.


Eu tentava animá-lo, é claro.


Cuidar da sua antes tão amada loja ou responder a suas conversas solitárias sobre Girassol era o que eu tentava fazer mas…


Não era o suficiente.

Ele só se afundava mais e mais…


Ao menos se eu pudesse…


Ao menos se pudesse fazer as coisas voltarem um pouco como eram antes… mesmo sem Girassol…


Eu tentei caçar passarinhos para ele – Seus amados passarinhos – Já que ele estava tão frágil, mas ele apenas me olhou.


Eu passei a ultrapassar a linha e pedir carinho, mas diferente de antes, quando quase me chutava, ele nem mesmo reagia.


Às vezes, eu até ganhava palmadinhas, meu Velho Respirando profundamente:


– E eu pensava que você faria companhia a Ele quando eu me fosse…


Mas ele parecia estar ficando mais irritado.


Seus olhos cada vez mais tomados de tristeza, tinham um toque de raiva.


Ele tinha menos paciência com as pessoas, expulsava quem vinha se preocupar com ele.


Eu continuava a me esforçar em tentar voltá-lo ao normal, fazer o que fazíamos antes.


Um dia, roubei um pedaço de carne de seu armazém meio esquecido e levei para a frente dele.


Era a minha esperança, na realidade, que ele pegasse a vassoura como sempre fazia antes, me perseguindo e ameaçando não fazer isso novamente.


Por um segundo, ele me olhou com tanto ódio e tanta raiva.


Por um segundo, ele quase pegou a vassoura.


Eu pensei que tinha funcionado.


Até ele cair no chão em prantos.

– PARE COM ISSO! – Ele rugia – PARE COM ISSO! COMO VOCÊ PÔDE?! COMO VOCÊ PÔDE?!


– PARE DE AGIR COMO SE AS COISAS ESTIVESSEM NORMAIS! ELE AMAVA VOCÊ, ARGO, COMO VOCÊ PÔDE?! PAREM DE AGIR COMO SE ELE NUNCA TIVESSE EXISTIDO! POR QUE?! POR QUE?!


– POR QUE EU SOU O ÚNICO QUE ESTÁ AQUI? SE LEMBRANDO?! O ÚNICO QUE ESTÁ CHORANDO?! O ÚNICO QUE NÃO ESQUECEU QUE ELE MORREU DEPOIS DE UMA SEMANA?!


– PARE DE CONTINUAR! VOCÊS NÃO TÊM O DIREITO! NÃO TÊM O DIREITO DE ESQUECER! NÃO TÊM O DIREITO DE AGIR NORMAL! NÃO TÊM DIREITO DE QUERER QUE EU FAÇA O MESMO! NÃO TÊM DIREITO QUANDO EU ESTOU AQUI!


– DÓI… Argo… dói tanto. Eles diziam que o amavam, mas estão sorrindo agora. Diziam que nunca superariam a morte dele, que até acompanhariam ele, mas agora, querem seguir com outros… por que? Por que eu sou o único que está aqui? Uma ferida aberta a cada dia, um objeto quebrado… Está errado. Está tão errado. Eu não deveria enterrar o meu filho…


Eu nunca mais peguei um pedaço de carne. Nunca.


Com ou sem Girassóis, o mundo continuava girando.


A vida, imparcial, nunca parou por nenhum rato que matei, ou outro gato que vi morto. Ela também nunca pararia apenas porque um dos humanos mais gentis e puros que conheci em minha vida, se foi da forma mais injusta possível. – Como os ratos que eu matava.


A vida continuava andando, para todo mundo, mas meu Velho Rabugento parecia ser o único que estancou por essa morte.


Eu queria dizer que não era verdade, ele não estava sozinho.


Ele sempre teve a mim.

Ele não sentia saudade sozinho.


Apenas que… eu nunca entendi de fato, tais rituais de luto humanos.


Gatos não fazem velórios.


Gatos não trocam a cor de seus pelos, choram, perdem a alma ou arrancam flores para expressar ou sofrer suas perdas - o motivo pelo qual os humanos faziam seus velórios, que eu percebi muito, muito tempo depois.


Nós sentimos.

Nós nos lembramos e apenas isso.


Para sempre.


Mas, de repente, quando ouvi as palavras de meu velho, quando vi todas aquelas expressão da própria dor, parecia que, talvez, apenas guardar para sempre aquele sorriso, lindo, no fundo de minha alma, fosse de certa forma, simplório demais. - Talvez, não demonstrasse, como os humanos faziam, o quanto eu realmente sentia falta dele.


De repente, me lembrei das flores que os humanos punham para seus mortos. - mesmo que não fossem girassóis, eram flores afinal - pensei que lembravam bastante meu Girassol.


Me pareceu uma boa idéia.


Então, eu passei a levar, todo dia, pequenas flores que me lembravam os girassóis - margaridas que tinham miolo duro como eles, ou flores amarelas, ou o mato-branco-voador – Dente de leão, na linguagem humana – que Girassol parecia amar soprar em meu focinho quando encontrava um.


Eu sentia falta, falta de me sentir irritado com isso.

Meu Velho foi piorando cada vez mais.


Ele parou lentamente de falar do filho, tomado de tristeza.


A comida que ele fazia se tornou intragável, passei a viver novamente de ratos.


Ele juntou tudo que era do filho e então, uma noite, simplesmente as trancou todas no antigo quarto de Girassol.


Se isolou.

Não ia mais à lápide de Girassol.


Evitava qualquer assunto que envolvesse o filho.


Muito, muito tempo depois, descobri que os humanos tinham certa tendência de evitar aquilo que lhes causava dor.


Lentamente, era o que o velho estava fazendo, se amortecendo, escondendo tudo aquilo que lhe lembrava o filho. Tudo o que lhe causava dor.


De me tratar bem, ele passou a me evitar.

Às vezes, eu o via me encarando profundamente. Meu pêlo arrepiava.


Era isso que eu era? Mais um dos objetos do filho dele? Era o que ele desejava? Me trancar naquele quarto? Para nunca mais me ver e não sentir mais dor?


Longe de sua vista, eu estaria longe de sua mente?


Mas eu queria tanto estar ao lado dele.


Eu era o único que sobrou, não era?


O único que estava lá para fazer companhia, sentir a dor dele.

Um dia, não sei quanto tempo depois, Meu Velho me pegou no colo pela primeira vez.


Era calejado e rígido, mas acho que foi o melhor – E único – abraço que já recebi, depois da morte de Girassol.


Ele me acariciou, pela primeira vez, dizendo palavras suaves. Deixou que eu ficasse em seu colo, me levou ao sol para aproveitá-lo comigo. Cozinhou, finalmente, uma comida que eu amava, e não Girassol, me permitindo comer o quanto eu quisesse.


Foi um dos melhores momentos da minha vida.

De tardinha, ele me guardou em seus braços, entrou um uma carroça, e me levou com ele para um lugar distante que chegamos apenas quando estava de noite, às beiras de uma outra cidade.


Ele saiu da carroça, acariciando minha testa, parado por um longo tempo.


E eu fiquei ali, desejando que aqueles segundos de silêncio durasse para sempre.


Não duraram.

Ele ainda me pôs no chão no final.


Ainda acariciou minha testa pela última vez.


Ainda trocou um último e longo olhar comigo – tão doloroso quanto minha carne viva.


– Vai ficar tudo bem. – Ele parecia querer assegurar a si mesmo. – Você podia viver antes de nós… – Ele engasgou.


Meu Frágil Velho Rabugento ainda virou as costas e foi embora, sem nunca olhar para trás, desaparecendo sob a noite estrelada.


Agora, ele estava verdadeiramente sozinho.



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Carmen Santos Autora do Bendita

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4 Comments

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Beth Bretas
Jul 07, 2022

Então foi assim que tudo terminou?Com a surpresa da morte de um jovem,a intolerável dor de um velho solitário e o gato sendo abandonado?Que incrível visão sobre a forma como enfrentamos as tristezas e as decisões que tomamos,você foi capaz de narrar brilhantemente.Adorei!Porém,se o gato tem mesmo 7 vidas,o que o espera agora?Porque eu espero pela nova história de vida desse gato.

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Guest
Jul 07, 2022

Ler cada capítulo foi para mim muito emocionante e prazeroso.A forma como você ia conduzindo os fatos com sabedoria e sentimento. Estou encantada.

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Guest
Jul 06, 2022

Eu também chorei ao ler.Muito linda sua história.Parabéns querida!Te admiro muito.

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Indie -_ -
Indie -_ -
Jul 05, 2022

Eu chorei escrevendo isso T- T

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