EU ME LEMBRO DE VOCÊ - CAPÍTULO IV
Ao Meu Velho Rabugento, Eu Dedico toda a Minha Compreensão - Parte 3/3.
Os dias voltaram ao normal depois daquele estranho entendimento, sem palavras, que tive com aquele velho.
Claro, nada nunca é como antes.
Meu tempo com meu Velho Rabugento foi um claro exemplo disso. Agora, tínhamos uma estranha terceira - e desagradável - roda apaziguadora entre nós: o irritante Girassol.
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Parte da culpa de nossos dias não se tornarem exatamente como antes de minha quase morte, iam diretamente para esse estúpido humano.
Todos os dias, no horário do almoço, - algo que aquele velho nunca faria - Girassol chamava meu novo nome terrível com um pequeno prato de comida na mão, que colocava nos fundos da loja do velho.
Na maioria dos dias, havia carne de aves, peixes ou animais que não conseguia identificar - daquela forma suculenta e perfeita, que apenas os humanos podiam fazer, que quase tinha esquecido o gosto:
Em caldos suculentos ou com legumes que eu fingia não ver, às vezes, apenas temperada, feita na grande coisa quente e vermelha onde humanos fazem sua comida.
Eu sempre me perguntei por que nunca assaram um rato. O gosto seria absolutamente incrível.
Se eu tinha sorte, - no caso, se permitia que Girassol me acariciasse - também recebia leite. Em dias de azar - provavelmente quando era o velho que assumia a comida sobre o fogo - tudo o que ganhava eram os malditos legumes.
Bem, nesses casos, Girassol não conseguia tocar nem em um fio de meus bigodes.
– Argo, você é tão exigente. - Girassol sempre foi muito dramático, pareceu até que queria fazer aquilo que os humanos faziam quando estavam vulneráveis, chorar.
Mesmo quando ele me caçou, o ignorei por dois dias, mas roubei a carne à noite, o que quase fez o coração do velho parar de raiva. De qualquer forma, acredito que ele recebeu o recado, já que o número de vezes que recebi apenas legumes - e consequentemente a frequência que o velho ia fazer comida - diminuíram consideravelmente.
Claro, comida à parte, nem tudo foram flores.
Com a existência de Girassol, sinto ao dizer que minha paz quase tinha acabado completamente.
Como se não estivesse satisfeito com a grande dádiva que era eu comer sua comida, Girassol continuava a me importunar como um insuportável mosquito.
Ele parecia ser onipresente. Era como se pudesse evoluir sua terrível habilidade de me localizar a cada nova semana. Meus novos ninhos e esconderijos, novas áreas de caça ou de banho de sol, muros frequentes, telhados para me deitar à noite, rotas recém-traçadas e até mesmo as novas áreas que marcavam meu território - que grande pesadelo - eram descobertos por ele em menos de uma semana.
E ele vinha atrás de mim, e arruinava o que eu estava fazendo no momento, sempre que eu levava mais que um mero meio dia pra passar no muro do armazém, ou quando não vinha comer sua comida.
Eu passei a me sentir irritado. Tão zangado, que tudo o que ele recebia quando se aproximava, eram sibilares e patadas afiadas.
Minha atitude com Girassol começou a ficar tão ruim que o Velho pareceu fazer o mesmo para comigo.
Ele voltou a gritar ou me expulsar do muro de trás de seu armazém, sempre que me via, antes de ser parado por seu filho.
As coisas que aconteciam antes do incidente voltaram a acontecer novamente: os roubos, as provocações e as brigas. Com a exceção de que não era mais divertido dessa vez.
Nós dois estávamos com raiva.
Entretanto, acredito eu, que nenhum humano, melhor, criatura nesse mundo - Com exceção das mães com novos filhotes, a época de reprodução ou os raros casos de companheirismo - estaria satisfeita sendo constantemente perseguida.
Infelizmente, não acho que aquele Velho Estúpido entendesse, ou quisesse ouvir meu discurso quando eu miava furiosamente para ele. Ele apenas brigava de volta com o filho:
– Para quê você quer esse gato?! É um demônio ingrato!
Minha rejeição cresceu com o tempo, mas Girassol parecia ficar cada vez mais murcho. Até que, uma noite, ele se sentou ao meu lado, - na distância mínima e cada vez mais longa que permitia que se sentasse - falando coisas idiotas, novamente. Contou-me sobre como ele queria assumir o armazém, como alguma fêmea humana era bonita, me falou de alguma gata do território ao lado que nunca tive o menor interesse, disse de outros animais, narrou sua vida na cidade grande, falou de amigos ou situações perigosas.
Então… ele pediu desculpas.
Mesmo que na época eu não fizesse ideia do que significava uma "desculpa".
Girassol falou sobre como era sua casa: Dentro do armazém, cheia de estantes muito boas para se tomar sol, tapetes felpudos para rolar, uma cama confortável, madeira boa para riscar garras, o pai dele. Desde que eu roubasse menos carne, estava tudo bem, ele cozinharia todos os dias para mim. Ele cuidaria de mim e não me prenderia em casa, eu poderia sair a hora que quisesse, desde que voltasse em três dias. Então, contou que seu pai tinha um fraco pelos passarinhos, e jogava sementes para eles de madrugada, antes do sol nascer, pensando que ninguém estava olhando, - é verdade, eu vi. E aí comecei a caçar os passarinhos por inveja - se fôssemos discretos, ele poderia até mesmo me ajudar a pegar alguns, já que tinha me visto caçando-os…
O olhei confuso, ele queria que eu lhe desse passarinhos? Como fiz com...
Como eu fazia com Minha Primeira Dona.
Ele parecia querer que eu ficasse ao lado dele. Como tinha feito com Minha Pequena Senhora.
Eu me senti estranho por um bom tempo.
Morar com um humano…? De novo? Todas as carícias e lambidas, todos os abraços e colos? Os beijos de bom dia e boa noite, as idas ao mercado?
Como tinha sido com ela?
Mas o velho morava em um mercado, não acho que ele queira ir para outro. E não acho que ele gostaria de me dar beijos, ou bom dias e boa noites.
Bem, ele estaria naquela cadeira, me encarando, então acho que conta como bom dia, ou boa noite. E, bem, eu faria meu ninho em um mercado, então acredito que apenas nunca sairíamos dele.
De repente, a ideia de morar com o Velho Rabugento - e Girassol - me pareceu muito atrativa.
Foi numa manhã ensolarada, - a seguinte - nunca esquecerei. O armazém já estava aberto.
Estufei o peito pra parecer maior, e entrei pelos corredores familiares e cheios de mercadorias, que podia traçar com os olhos fechados.
Na verdade, meu maior medo era o Velho Rabugento.
Mesmo que Girassol tenha um bom controle sobre ele, pra ele, estava bem? Se Girassol me chamou, então Meu Velho Rabugento concordou?
Escalei uma prateleira como se já fosse minha, e o vi no balcão.
Ele apenas me olhou de volta, bufou e desviou o rosto.
Girassol quase morreu de felicidade quando me viu ali naquele dia.
Os dias passaram depressa.
Eu assumi aquela prateleira como minha, e o papel de vigiar cada pessoa que entrava naquele armazém.
Havia uma velha humana rechonchuda que sempre conversava com meu Velho Humano.
Humanas com filhotes.
Humanos com humanas.
Humanos com humanos.
Compravam carne.
Compravam algo que se chamava especiaria - e o que deixava a carne tão boa além do fogo.
Compravam álcool - a droga.
Compravam grãos, - sementes, que também comiam, como passarinhos.
Compravam coisas para limpar suas tocas.
Compravam até as peles que vestiam. - Tecidos, embora os que mais compravam eram as fêmeas, ou seus machos, que as acompanhavam.
Levou um tempo para meu Velho realmente se acostumar comigo. Assumiu uma atitude relativamente aceitável, para ele, me ignorar totalmente. Até mesmo quando eu roubava um pequeno pedaço de carne, já que se não o fizesse, entraria em conflito com o filho.
Foi muito bom.
Meu Velho tinha duas caras. Sempre atendia aos humanos com o temperamento que realmente não tinha, até mesmo sorrindo. À tarde, depois do almoço, quando todos estavam preguiçosos, ele se sentava num banquinho e se punha a conversar com demais velhos humanos conhecidos. Nessas horas, me deitava o mais próximo que podia sem que ele me expulsasse, - ou notasse, ou ele talvez fingia que não notava - dormindo.
O Trabalho de Girassol era mais complicado que Meu Velho, acredito. Mesmo que na maioria das vezes eu estivesse na companhia de meu Velho. Sempre via Girassol curvando sobre uma mesinha, escrevendo em um caderninho ou contando o dinheiro que recebiam dos humanos que compravam as coisas ali.
Então, ele sempre sorria, e fazia uma comida deliciosa para nós dois:
– Os lucros foram ótimos essa semana!
Quanto aos bons dias e noites…
Bem, as carícias vieram apenas do filhote de Meu Velho, não do Velho.
Mesmo sendo muito diferente dos de Minha Pequena Senhora, os carinhos de Girassol eram exatamente como pareciam: exatos, ensolarados, calorosos.
Suas mãos eram tão delicadas e confortáveis que eu semicerrava os olhos, ronronando. Ele era realmente tão suave como uma flor: Sempre com aquele sorriso no rosto, sempre com sua voz amorosa e doce, sempre tratando Meu Velho, ou mesmo eu, como se fôssemos seu maior tesouro.
Ele sempre apaziguava seu pai quando este ficava com raiva. Na verdade, as vezes que via Meu Velho sorrindo amplamente e de verdade, eram unicamente para seu filho.
Quando era Girassol, todo mundo sempre sorria.
Até o ar ao redor dele sorria.
Aquele jovem humano parecia conhecer qualquer humano que passava, puxando para conversar, os alegrando.
E parecia ter o dom de cortejar humanas também, já que sempre o via fazendo as jovens fêmeas, - moças ou donzelas, era como os humanos as chamavam na época - gargalharem timidamente. Ele também sempre ajudava as humanas mais velhas com suas compras.
Ele era gentil com os filhotes humanos.
E para meu desgosto, com outros animais desconhecidos também, embora depois de tanto tempo tenha convidado apenas a mim para morar ali.
Eu dormia com Girassol em sua cama, mas apenas depois que terminava de vigiar silenciosamente o armazém com Meu Velho, também reservando parte de meu dia para o jovem, já que seu dia a dia era consideravelmente mais interessante que o de Meu Velho, sempre atrás do balcão.
Claro, apenas depois de fazer companhia ao Mau Humano.
Quanto a este, a convivência com ele era mais silenciosa, mais quieta, talvez porque este nem mesmo a quisesse, se não fosse pelo filho.
Ele não gostava muito de falar, ao menos, comigo. E tenho certeza que nunca me viu como nada além de um gato.
Eu não me importei. Eu sempre me abaixava perto dele. Observando o armazém, como ele.
Meu Velho Humano poderia ser levemente Rabugento, às vezes cruel, mas nunca foi mau, ou injusto quando realmente tinha noção das coisas.
Pra começar, eu rapidamente cacei e matei todos os ratos ali, incapaz de suportar que estes vivessem à minha exata toca, mesmo que fossem minha refeição.
Na realidade, eu assumi muito a sério meu trabalho como senhor daquele território.
E Meu Velho Humano realmente percebeu meu trabalho depois de um tempo que os ratos se foram.
Silenciosamente, numa noite em que estava apenas nós dois, ele deu um prato de carne assada - que humanos fazem com fogo - feita por ele, especialmente para mim.
Fazia muito tempo que meu coração tinha se aquecido assim.
Eu comi a carne. E ele observou.
Eu peguei um grupo de crianças roubando doces, e na calada da noite, ele me observou comendo a comida que ele preparou novamente.
E novamente.
E novamente.
Até que se tornou comum que ele cozinhasse para mim depois que Girassol já dormia.
Era nossa preciosa convivência do dia a dia. Apenas nossa.
E eu pensei que nunca acabaria.
Até a noite em que Girassol não voltou.
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
Eis uma grande surpresa! Um tempo de harmonia entre os personagens. Eis algo inesperado! Uma pitada de ciúmes do Girassol. Adorei!
Guenta coração. Sensacional!!
Há cada capítulo fico ansiosa para que o próximo não demore.
Aaaaah, está chegando o fim desse arco. Preparem seus corações~