EU ME LEMBRO DE VOCÊ - CAPÍTULO XI - PARTE 2
Foi em uma manhã desagradável que tive o pressentimento que algo estava errado.
E, pra ser justo, me julgo cruelmente por isso. Foi um pressentimento muito tardio, já que o dia em si tinha começado péssimo.
Foi a terceira madrugada seguida que Canarinho passava em claro naquela maldita escrivaninha, sob a tremeluzente luz de um pequeno lampião*.
Vê? O dia já estava especialmente terrível:
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Amanheceu cinzento como o choro de um gatinho que perdeu a mãe, frio como o vento que só sopraria num inverno, úmido, já que era como se as nuvens tivessem descido à terra.
Humanos a chamavam de névoa, mas não passava de uma nuvem. Uma baixa e fria nuvem que não permitia que eu visse mais que meras patas à frente de meus olhos e acumulava, irritante e instantâneamente, gotículas de água em meus bigodes.
Claro, também havia meu humor.
Afinal, Canarinho não dormia e mal comia havia três dias.
Eu estava furioso.
Tão furioso que, ao contrário do que faria normalmente, saí naquele amanhecer sombrio, ávido por um rato.
Oh, outro mal sinal?
Os ratos.
Pegar um faria Canarinho sair berrando e pulando daquela cadeira, mas graças à névoa, eu não via nem farejava nada. Tinha, no máximo, apenas meus ouvidos para contar, de todos os meus sentidos, e, francamente, isso não é nada bom.
Modéstia parte, sou um EXÍMIO caçador, faço isso desde que minha mãe me ensinou, sabe-se quantos anos atrás.
Já cacei, abati ou matei, mais presas que um humano poderia contar, e fiz isso em inúmeros lugares inesperados.
Por vezes, cheguei, com um salto, a pegar pássaros que voavam ao ar, saltando de um telhado.
Já consegui pegar ratos selvagens sob tempestades de lua nova que duraram dias.
Podia, até mesmo, pescar peixes quando mergulhava em um rio.
Tinha poucos problemas ao caçar roedores sobre a neve densa.
E, muito orgulhosamente, digo que uma vez cheguei até mesmo a caçar um pequeno cervídeo, o que quase me custou a pata.
E essa cicatriz é o meu troféu.
Pode parecer pouco para um humano ou um felino maior, mas que gato já conseguiu abater um pequeno cervo?
Se eu disser que sou o segundo melhor gato na caça, não haverá outro ousando dizer que é o primeiro.
Então, quando digo que é difícil caçar… é por que o era.
A névoa adormecia meus sentidos, como as lambidas de uma mãe recém-parida. Me vi incapaz de cheirar ou ver nada além do ar velho, parado, por aquela maldita nuvem que escolheu descer à terra.
Felizmente, eu ainda tinha meus ouvidos, e me animei pensando que, se conseguisse caçar algo naquela madrugada horrível, a adicionaria, com orgulho, em minha lista de grandes conquistas.
Com isso e com o pensamento de que finalmente tiraria aquele humano dos papéis, me esforcei em me orientar pelos sons e memórias de meu território, captando, com sucesso, os sons estridentes das conversas dos ratos e os ruídos agudos de suas garrinhas contra o chão duro do frio.
Voltei correndo quando, finalmente, após algum fracasso, capturei um. Já tinha passado um tempo, a névoa dissipando o suficiente para que enxergasse formas. Não abati o roedor, já que ratos mortos perderam seu efeito com Canarinho, infelizmente, por isso, tive que aturar seus débeis ruídos e lutas inúteis contra meus ouvidos.
Foi quando eu estava chegando em nossa toca.
De repente, os berros de Canarinho me fizeram pular:
– CONSEGUI!!!! OH, PELOS CÉUS, EU CONSEGUI!!!!!!
O rato caiu no chão, os rastros de seu sangue tingindo o caminho pelo qual fugiu, morimbundo.
O gotejar perturbador daquele fluido ecoou em meus ouvidos, gelando minhas veias, aquelas gotas vermelhas desabrochando no solo, como flores macabras.
– SÁBIA?! ONDE ESTÁ VOCÊ?! EU CONSEGUI!!!
Assim, o vulto do rato finalmente caiu, morto numa terra gelada.
Meus pelos se arrepiaram como se visse um monstro.
Então, algo abafado em meu peito gritou, junto com os berros de Canarinho.
Era algo ruim
Muito. Muito ruim.
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Lampião: Artefato humano onde uma pequena chama sobrevive dentro. Humanos usam sua luz para iluminar a noite, já que tem péssima visão noturna.
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Há dias assim: amanhecem cinzentos e anoitecem sombrios.
Namastê!
Gostei das figuras que você usou nos efeitos comparativos e na sua capacidade de segurar o leitor, atiçando a imaginação para o próximo capítulo... Parabéns!