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EU ME LEMBRO DE VOCÊ - CAPÍTULO XII - PARTE 2

Foto do escritor: DIDI ANDRADEDIDI ANDRADE

Ainda morava com Canarinho, claro. Afinal, ele era meu Canarinho.


Entretanto, eu o evitava constantemente.


Em parte, era pelo grande desconforto que sua atual presença me trazia, e, em outra, era pelo grande...


Incômodo, que me corroía por dentro.


Eu francamente não sabia o que fazer. 


Não sabia o que fazer quando aquela sensação de pressentimento horrível gelava minha nuca, de novo e de novo.


Não sabia o que fazer quando era inútil rasgar aqueles malditos papéis rabiscados, em cima daquela mesa idiota que meu Canarinho constantemente se dedicava.


Nunca pensei que tal impotência me doeria tanto.


A incapacidade de falar apropriadamente meus pensamentos nunca doeu tanto, nem mesmo quando protegi, por dias, minha Pequena Senhora já fria. Não foi tão dolorido mesmo quando fui apedrejado como demônio, perseguido por uma vassoura ou deixado em uma estrada*, naquela noite chuvosa e fria. 


Talvez, eu tenha sentido um pouco dela e nunca tenha percebido. Talvez, ela tenha se acumulado tanto que, agora, finalmente explodiu e eu me vi realmente incomodado: Miar, sibilar ou tentar leva-lo a outra coisa, qualquer coisa, era vista por ele não como uma preocupação, não como agonia, não como um choro desesperado, e sim como uma simples e pura falta de respeito.


Culpei Canarinho, verdadeiramente, o culpei por ter uma inteligência tão boa em fazer coisas voarem, fossem objetos ou a sua capacidade de se comunicar comigo.


Embora, francamente, essa seja uma clássica natureza humana, nunca entendendo nada além deles mesmos.


Ou, quem sabe, a culpa fosse realmente por sermos de espécies diferentes, nós víamos o mundo de forma diferente: Ele, papéis, torres e reconhecimento. Eu...


Olhar nos olhos daquele humano me trazia um gelo surdo na ponta de minhas garras, e não tinha nada que eu pudesse fazer.


Enfim, evitar meu humano atualmente anormal significava que eu tinha que passar a maior parte de meu tempo fora, fazendo alguma coisa.


Comecei a gastá-lo com o que fazia antes, mas nenhum banho de sol, nenhuma afiação de garras, nenhuma caça e nenhuma patrulha de território pareciam ser capazes de tirar minha preocupação da cabeça.


Me vi fazendo algo que nunca passou em minha mente em muito tempo: 


Voltei a frequentar a Torre Torta.


Vai saber por que fiz isso?


Minhas patas apenas me levaram para lá.


Talvez... fosse curiosidade?


Às vezes, eu realmente me via imaginando o que tinha acontecido lá, depois do que fizeram com meu Canarinho.


Eu já tive raiva, sim, mas nunca realmente guardei rancor para a Grande Torre Torta, Canarinho ficou terrível, de fato, mas todas as espécies que vivem em sociedade agem de seu jeito estranho.


Sempre há os mais fracos, os mais fortes e os que estão no comando do bando.


Sem exceção, os mais fracos acabam eliminados, os mais fortes determinam as regras e as ameaças são expulsas. Isso funciona em todas as espécies que vivem em comunidade.


Humanos podem construir suas florestas de pedra, vestir suas peles falsas e construir coisas que nunca veria em qualquer outro lugar, mas, no final, viviam nas mesmas condições de grupo que os ratos e os lobos.


Canarinho é um reflexo óbvio disso, mas não foi o primeiro, nem o último.


Eu achava que ele sofria isso por ser o fraco, mas agora me vi repensando se o sexto sentido dos humanos era realmente pouco aguçado, talvez eles tenham sentido o que eu estava sentindo agora: ameaça.


Mas, assim como eu imaginava, tudo que acontecia em nossa pequena toca, toda a dor e a agonia, toda a ansiedade e o desejo de conhecimento, nunca afetou em nada a Grande Torre Torta.


Ou, ao menos, foi o que pensei, até notar que, ao fim da tarde, todos os dias, um humano de óculos* fundos saía cautelosamente dela e, então, vagava entre os demais humanos da rua. 


Claro, normalmente, não me chamaria a atenção.


Não se o lugar para o qual ele ia ficava na direção de minha toca.

_________________


Estrada: uma trilha sem vida, feita por humanos. A usam para ir mais facilmente a algum lugar.


Óculos: Geralmente, no selvagem, quem não enxerga direito morre, mas os humanos realmente conseguiram contornar isso. Não se sabe como funciona, mas os com mal visão podem voltar a enxergar normalmente, desde que usem essa coisa na frente dos olhos.






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2 Comments

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Jefferson Lima
Jefferson Lima
Jun 12, 2024

"Sem exceção, os mais fracos acabam eliminados, os mais fortes determinam as regras e as ameaças são expulsas. Isso funciona em todas as espécies que vivem em comunidade."


Quanta verdade dentro de um texto de ficção e cheio de poesia!

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Guest
Jun 10, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

Espero que não dure muito tempo a estranheza que tomou conta destes dois seres tão diferentes.

Namastê!

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