EU ME LEMBRO DE VOCÊ - DIA E NOITE
- DIDI ANDRADE
- há 8 horas
- 3 min de leitura
Com a música úmida do metal atingindo a terra, chovia, naquela tarde sem cor.
Um ser verdadeiramente desprezível, era a chuva. Ela era tão desagradável quanto o peso que empurrava meus ombros para baixo. Empapava meu pelo, deixava tudo úmido e choroso, sufocava o som dos prantos compulsivos de Canarinho.
E ainda havia aquele maldito som, daquela maldita pá.
TUMP
Como eu odiei a chuva, cá estava ela de novo, cantando com as batidas miseráveis de meu coração, sentindo que Canarinho também estava indo embora.

Canarinho… nem sei como ele conseguiu cavar naquela terra encharcada, fosse pela força física que ele não tinha, as lágrimas que o cegavam, ou os soluços que o impediam de respirar direito.
Estávamos na campina. Ele cavava em prantos sob as raízes da árvore que, um dia, dormíamos e comíamos piqueniques, nós três.
Mas Óculos Fundos não estava mais lá. Ele nunca mais estaria, teve uma morte miserável, esmagado pela Grande Torre Torta.
Eu nunca veria seu sorriso de novo.
Ou sentiria seu cheiro de livros, ou sentiria seu toque. Ele estava morto.
Morto por pedras.
Morto pela maldita Torre Torta.
Morto pelo… pelos planos de Canarinho.
A cidade inteira estava enterrada sob um tule de luto. A Torre Torta tinha ruído com muitos.
Óculos Fundos tinha morrido. Muita gente tinha morrido.
E Canarinho estava destruído.
Ele não falou nada enquanto cavava, compulsivamente, talvez nem conseguisse. Estava empapado pela chuva, as roupas grudavam no corpo, ao seu lado, um baú pesado quase afundava na terra encharcada.
Não era Óculos Fundos, o corpo dele ainda estava sob os escombros. Seria levado pela família, provavelmente.
Quando aconteceu, depois dos berros chorosos, fiz Canarinho correr. Não sei o que fariam com canarinho quando descobrissem que foi ele, mas sei que humanos podem ser impiedosos.
Então, Canarinho correu por si mesmo. Pegou todas as suas pesquisas e as trancou em um baú. Era o seu tesouro mais precioso e o meu grande fardo.
Quando finalmente cavou até que um buraco das raízes da árvore fosse revelado, ele empurrou o baú com todas as forças que tinha lá para dentro, jogando terra por cima logo depois.
Encaramos a árvore, Canarinho caiu de joelhos, aos prantos.
– Eu não queria… Não…. Eu nunca pensei…
Eu nunca tinha feito o que ele fez.
Mas eu conhecia a dor de perder alguém amado.
Nunca culpei Canarinho. Mas ele deve se culpar pelo resto da própria vida.
Então, provavelmente por isso, achei justo que Canarinho pegasse de volta as cores com as quais tinha pintado meu mundo. Ele precisava delas, tanto quanto eu.
Eu sou apenas um gato.
– Você é o único que sabe sobre isso, Sabiá. - Murmurando, trêmulo, coisas ininteligíveis, Canarinho se ergueu. Tirando dos bolsos a chave que abria aquele maldito baú, ele a amarrou, ao redor de meu pescoço. - O único que… - seus olhos marejam, ele sufocou um soluço - Me perdoe…
As chaves eram tão geladas quanto a mão dele.
– Só por um tempo… - Canarinho deu passos para trás - só enquanto eu me acalmo… - ele enxugou as lágrimas com força - Só cuide deles por um tempo… - Ele olhou no fundo dos meus olhos - Eu prometo que eu vou voltar.
E assim, meu mundo ficou cinza.
Canarinho foi embora, levando tudo o que eu tinha com ele.
E eu esperei.
Aguardei, confiei, desejei, imaginei, acreditei.
Sempre. Fosse chuva ou fosse sol. Até o dia em que Canarinho voltasse.
Ele ia votar.
Ele me prometeu.
Então eu esperei.
Esperei do acordar do sol até ele ir dormir.
Esperei do nascer da Lua até ela sumir no horizonte.
Eu esperei quando choveu.
Eu esperei quando o astro do meio dia queimou meu pelo.
Eu esperei quando ventou.
Eu esperei quando a terra secou.
Eu esperei sob relâmpagos quando trovejou.
Eu esperei quando nevou. Quando a neve derreteu. Quando as flores abriram. Quando as plantas murcharam. Quando os pássaros migraram. Quando as aves voltaram.
Dia e noite.
Dia e noite.
Dia e noite.
Dia e noite.
Afinal, Canarinho prometeu.
Ele ia voltar.
E claro que eu ia acreditar. Eu estava cumprindo nossa promessa. Eu sei que os humanos eram vingativos mas já fazia muito, muito tempo. Ninguém tinha realmente acreditado nos pouquíssimos que haviam dito que a torre voou. Nunca suspeitaram de Canarinho.
Eu fiquei ali, como ele pediu, com aquela chave irritante no pescoço, naquela árvore onde enterrou meu pior fardo.
No início, eu pensei que seria rápido. Que Canarinho viria quando descobrisse que não o culparam, que iríamos embora dali.
Eu sentava, todos os dias, na borda da colina, e encarava. Ouvia alucinações, esperava que fossem ele.
Por semanas.
Nos meses.
Nesses anos.
Parei de esperá-lo na borda da colina.
Nada parecia mais importante.
Eu apenas…esperei.
Noite e dia.
Noite e dia.
Noite e dia.
E Canarinho…. Canarinho havia prometido que ia voltar.
Não se esqueça de deixar um comentário, e seguir nossas redes sociais:

Eis a dor das promessas que não se realizam.
Namastê!