INTERVALO CASA CONSULTA

Acordei cedo. Coloquei sobre a mesa exames e bolsa. Verifiquei bateria celular. Degustei meu café da manhã. Tomei banho...

Chamei Uber... Cartão inválido.

Desci três quarteirões para pegar dinheiro, aumentei 8% no valor da corrida e diminuí minha margem de segurança em relação ao horário da consulta.

Planejamento desfeito, a vida assumiu comando.

Entrei agitadíssima no Uber, comentando o quanto a vida estava me surpreendendo.

- Moço, ontem, saí numa tarde ensolarada e, três horas depois, resolvi retornar a pé - 30 min de caminhada.

De repente, não mais que de repente, sem que o céu escurecesse nem o Sol fosse embora, um temporal caiu, um arco-íris atravessou a avenida e eu, a louca das fotos, estava debaixo de uma marquise e fui chamada pela foto.

Atravessei a avenida e fotografei aquela tarde de chuva, sol e arco-íris.

Toda molhada, resolvi seguir debaixo do temporal que transformava o asfalto num lindo espelho iluminado por faróis.

Mas, a minha surpresa foi maior, moço, quando à noite, o noticiário mostrou a destruição que aquele temporal havia causado em vários pontos da cidade.

Ele me olhava pelo retrovisor e sorria.

Enquanto eu, louca, não parava de falar.

- E agora, surpresa! Cartão sem validade. Como assim?!

E ele respondeu:

- Então, eu não trabalho com dinheiro, tenho esse recurso bloqueado e não sei explicar o porquê de o aplicativo ter me encaminhado para seu endereço. Quando percebi já estava com você no portão.

- Tinha que ser você, moço, a vida toma decisões! Não adianta tentar explicar!

E rimos...

De repente, um grande susto, bem na nossa frente. A imprudência de um motoqueiro quase atropelou uma garota. Ela chegou a jogar o corpo para trás, na frente do Uber e se manter como uma estátua, enquanto o motoqueiro seguia em frente, depois de conseguir dominar a derrapagem.

- MEU DEUS!!!

Respiramos fundo e o trânsito voltou a circular, ao som do meu comentário:

- O dia promete! Não sei se a vida está nos cobrando controle ou entrega.

Então, falamos sobre o meu medo de dirigir, sobre o dia em que meus filhos tiraram carteira, sobre experiências no trânsito...

Falamos sobre nossas crianças, sobre o Natal, sobre o quanto a vida pode perder, ou não, o entusiasmo - o quanto aprendemos, o quanto tanta coisa tola e pequena deixam de ter sentido.

Falamos sobre a cidade de São Paulo, uma viagem que ele fez e sobre minha filha estar morando em São Paulo...

E, de repente, num segundo de silêncio, percebi o quanto havia de tranquilidade dentro do veículo, vindo do jeito calmo daquele moço que estava ali sem saber explicar como havia chegado.

Eu falava, ele sorria. Eu sorria, ele falava.

Chegamos ao destino.

- Você está com sorte. Não precisa troco.

Ele sorrindo, respondeu:

- Cuidado, quando for tirar foto de arco-íris.

Devolvi o sorriso e me lembrei de Fernando Pessoa e sobre os significados que atribuímos às coisas.

“Passa uma borboleta por diante de mim

E pela primeira vez no Universo eu reparo

Que as borboletas não têm cor nem movimento,

Assim como as flores não têm perfume nem cor.

A cor é que tem cor nas asas da borboleta,

No movimento da borboleta o movimento é que se move.

O perfume é que tem perfume no perfume da flor.

A borboleta é apenas borboleta

E a flor é apenas flor”.

NAMASTÊ!

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