O MOÇO DA CALÇADA
Caminhando por um amanhecer ensolarado, passei por um rapaz loiro, muito jovem, sentado na calçada, no meio de sacolas de lixo, rasgadas por ele que buscava por alimento...
- Bom dia, moça!! Simpaticamente, ele se dirigiu a mim.
- Bom dia, moço!! Sorrindo respondi.
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E passei por ele, sem olhar para trás, sem correr o risco de observar detalhes que pudessem violar a privacidade daquele moço tão jovem de sorriso tão lindo.
Segui dentro de um silêncio que guardava o desejo de que ele fosse capaz de aproveitar, ao máximo, toda a experiência daquele ciclo de carência que entrou em sua vida com permissão ou sem permissão e que, mais cedo ou mais tarde, iria embora.
Um dia, ele se levantará da calçada, dizendo: CHEGA!
E a vida o receberá como alguém que viveu uma experiência e se tornou capaz de argumentar sobre ela, frente a uma plateia, recebendo aplausos e reconhecimento como fez Carolina Maria de Jesus em sua obra Quarto de Despejo, um título que em si já carrega abandono, mas que possui a força de atravessar Oceanos.
“Um operário perguntou-me:
– É verdade que você come o que encontra no lixo?
– O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada...”
Carolina Maria de Jesus
Há em cada forma de se expressar e viver a presença da dignidade, mesmo quando parece faltar...
“...Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o frei visse os seus filhos comendo gêneros deteriorados, comidos pelos corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras.” - Carolina Maria de Jesus
O ser em si é digno e pode passar por experiências que testam sua dignidade dentro de possibilidades que parecem indignas, aparentemente, mas que não possui força suficiente para matar a dignidade de um ser.
Na essência vital desse moço já existe entendimento contido em palavras que, ainda, ele não consegue formular, como conseguia Carolina Maria de Jesus.
“O branco diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém.” Carolina Maria de Jesus
Procurar entender o que se passa na vida e na cabeça de pessoas que cruzam, por instantes, nossos caminhos - como esse moço cruzou o meu – é desumano. Nada sabemos sobre essas pessoas que vivem sob olhares que acreditam que elas sejam vadias e preferem viver à custa dos outros – porque são milhões de olhares acusadores que atravessam o peito de uma pessoa tão fragilmente exposta. Olhares alheios que se esquecem, nessa hora, que para todo ser humano, manter-se vivo exige luta!
E que a pessoa exposta, LUTA, todos os dias, por um motivo pelo qual não sabemos absolutamente nada e que injustamente desclassificamos como luta pequena.
“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.”
Carolina Maria de Jesus
O Moço da calçada não desistiu da vida e, sem saber, transformou meu amanhecer, naquele dia, em algo muito maior do que simplesmente o fato de acordar para enfrentar minha rotina.
Ele me fez lembrar do final do filme Alto da Compadecida, cena em que Jesus aparece como um homem negro disfarçado de mendigo...
E penso que pode não ser, necessariamente, a falta de moral ou a falta de dinheiro ou a falta da família que coloque uma pessoa nesse estágio concreto de vida, como diz Carolina Maria de Jesus:
“...as misérias são reais.”
Não sei dizer em que momento a humanidade passou a acreditar que para ganhar o Reino do Céu, precisamos nos flagelar, sentir dor, sofrer, chorar...
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“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.” Carolina Maria de Jesus
A obra Quarto de Despejo possui uma narrativa e contém uma gramática de quem registrou a vida desafiadora tão real e, ao registrá-la de forma tão íntegra, desbancou todo e qualquer olhar acusador.
“… O José Carlos chegou com uma sacola de biscoitos que catou no lixo. Quando eu vejo eles comendo as coisas do lixo penso: E se tiver veneno? É que as crianças não suporta a fome. Os biscoitos estava gostosos. Eu comi pensando naquele proverbio: quem entra na dança deve dançar. E como eu também tenho fome, devo comer.” Carolina Maria de Jesus
Carolina, se assim for, ter que sofrer para merecer, o jovem tão lindo e sorridente está lutando para ganhar o Reino do Céu como você lutou.
E tudo que desejo é que lá, acima das nuvens, vocês se encontrem e troquem longas conversas sobre o Reino do Céu e não sobre experiências de quem viveu a miséria humana, aqui na Terra. Amém.
“Minha existência é sombria
Vivo tão só neste mundo
Minha amiga é a poesia
Que não me deixa um segundo.”
Eis o meu tributo ao sorriso lindo do Moço da Calçada e à Carolina Maria de Jesus que viveu tão admiravelmente a falta do essencial e se alimentou de poesia.
NAMASTÊ!
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Forte, a vida tem umas durezas, não é? ♥️
Texto forte e reflexão necessária! Tristemente lindo, Beth! Parabéns!
Muito bom! Parabéns! Gostei muito, muito!
Quando li sua postagem, encantei -me. Namastê, Beth. Muito proposital este texto.
Saudades!
Que lindo!!!!