POR FORÇA DAS CONTINGÊNCIAS

Num final de tarde engarrafado e cheio de gente querendo voltar para casa, um homem e uma mulher, desconhecidos, paralelamente, seguiam pela Avenida Portugal.

Num determinado momento, ele criou coragem e disse:

- Aceita um picolé, senhora?

Ela sorriu e respondeu:

- Obrigada.

Depois de mais alguns segundos, novamente cheio de coragem:

- Senhora, por que as pessoas acham que tenho que levar prejuízo?

Ela olhou para ele com um olhar de:

É mesmo, senhor?!!!

E ele aproveitando a oportunidade de poder partilhar sua angústia, disse:

- Está vendo este carrinho? É trabalho duro! Ando o dia inteiro, mais ou menos 20 Km, para vender meu picolé. E durante o dia, pessoas sem noção se aproximam.

Hoje, uma mulher com sua amiga veio e pediu dois e me entregou R$ 10,40. Devolvi as moedas e disse que eu tinha troco. Meu picolé custa R$ 1,25.

Entendeu?

Outro dia, tive que escutar:

- “Seu picolé é de ouro”?

Vou confessar para a senhora, decidi não dar mais espaço para cliente folgado! Respondi:

- Não sei! Liga para a fábrica e pergunta.

- Tá querendo perder cliente?

- Tô!

Em outro momento, senhora, um carro bacana, com um engravatado dentro, parou ao meu lado e começou a questionar o preço do meu picolé! Disse que picolé bom é o da Kibon!

O que tenho a ver com a Kibon?!

O picolé mais barato dela custa R$ 2,00. O meu custa R$ 1,25. Quem tem o ouro?

Não dou mais direito a cliente folgado e disse a ele:

- Deixa eu te falar uma coisa, senhor, não fale sobre aquilo que não conhece. Quem te contou que o picolé da Kibon é melhor que o meu? Você não conhece o meu! Opine sobre aquilo que conhece...

Naquele entardecer, ela, no lugar de escuta, permitia que ele, no lugar de fala, vomitasse a sua indignação.

- Olha, minha senhora, por força das contingências, por coisas que vão nos acontecendo na vida, estou nesta situação, mas tenho curso superior! Já fui um engravatado. O Governo do Fernando Henrique contribuiu para a minha situação atual e eu tenho que agradecer muito a este carrinho, porque com ele consigo meu “ganha pão” que é pouco, mas me ajuda.

Observo as pessoas entrarem na padaria, pegarem um picolé da Kibon, abrirem a embalagem e só depois perguntarem o preço. Pagam R$ 5,00 num picolé e saem felizes da vida...

O que tenho a ver com essas pessoas? O que elas têm a ver comigo?

Foi nesse momento, com essas perguntas, que o encontro se interrompeu.

Ela parou, se virou para ele e sorriu. Ele também parou. Ela olhou para aquele rosto tão indignado e disse:

- Senhor, cheguei ao meu destino. Viro a próxima esquina. Faça isso mesmo, não deixe as pessoas, que nada sabem sobre a sua vida, falar mal do seu picolé. O senhor está certo! Não dê ouvidos a cliente engravatado.

- Obrigado, senhora!

- Vá com Deus!

E o homem seguiu seu caminho

Enquanto aquela tarde, que também escutou o desabafo, se preparava para encerrar o dia.

E a senhora parada na esquina, observava aquela noite chegando de mansinho neste planeta cheio de pessoas que se dão ao direito de ter direito de abusar do outro.

E naquele entardecer, iluminada por faróis, ela pensou:

É mais uma noite que acobertará este mundo cheio de injustiças sociais.

Esse homem não é só um vendedor de picolé! Não!

Ele possui a força da própria vida. Aquela força que ao mesmo tempo em que enverga, nos apluma também. Aquela força que é sempre um convite ao recomeço.

Ele é um homem que não se deixa abater pelas contingências, ele é um lutador que, ainda, não se descobriu como eleitor, como agente transformador, como aquele que sabe que a soma de 1+1+1... dentro de uma urna, pode mudar o contexto do mundo e, essa mudança, poderá ser registrada na História como a Era do Paraíso.

“Você pode disparar com suas palavras, pode me cortar com seus olhos, pode me matar com seu ódio, mas, ainda assim, como o ar, eu me levantarei.”

(Maya Angelou)

NAMASTÊ!

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