EU ME LEMBRO DE VOCÊ | CAPÍTULO VII - PARTE 1

Um Tesouro em uma Árvore - Parte 1

Como acredito que já disse muitas vezes, o tempo nunca parou.

Ele galopou quando conheci minha pequena senhora, disparou quando Meu Velho Rabugento deixou de ser meu, e continuou a correr, até que tudo o que tive foram as memórias mais preciosas - guardadas dentro das gavetas de meu coração, embaladas com a proteção de minha alma, relembradas e protegidas de minha própria mente sobrecarregada.

Lembranças.

Resquícios meus, que vivi tempo demais.

Verdadeiramente demais.

E quando se vive demais - mais do que deveria, mais do que poderia ser possível - sua mente - que, de certa forma, também deveria ser normal - vai tomando um próprio meio de auto defesa:

Abandona memórias.

Afinal, é informação acumulada demais para se suportar.

Acontece quando dormimos, por exemplo. A mente, já automaticamente descarta as memórias do dia que não foram importantes. Acontece mesmo no próprio caso do envelhecimento, quando apenas descobrimos que, da infância, - e da vida - lembramos apenas o mais inesquecível.

Nenhuma mente - mesmo vivendo a expectativa de vida que deveria - realmente suporta tanta informação que acumulou a existência inteira.

Quanto a mim…

Eu… tento desesperadamente não esquecer, de nenhum deles. Não deles.

Por isso, além de ter certeza que voltei a viver por mim mesmo, - Como o Velho havia afirmado, em seu pedido de desculpas antes de me deixar - não me lembro de muita coisa.

Minha mente precisa apagar alguma coisa para não quebrar afinal. - Não é como se fossem memórias tão valiosas, eram dias pacíficos e iguais.

E, também, não é como se fosse um eterno borrão, ainda me lembro das sensações. Correr sobre as folhas, caçar ratos, lamber meu pelo sob o sol, já são sensações gravadas em meu pelo.

Mas… bem, em algum momento eu senti que era diferente, acho.

Lembro-me que sempre me vi incomodado com os demais membros da minha espécie. Havia uma… rejeição mútua, um isolamento subentendido. Eu não queria chegar perto, e os demais gatos - mesmo as gatas - não queriam se aproximar. - Nunca senti vontade de ter filhotes, de qualquer maneira.

Era o suficiente ter alguma presa e uma faixa de sol para me deitar.

Minha vida muitas vezes girava em torno apenas disso, e as poucas interações que tive com demais gatos - depois de minha mãe e meus irmãos que mal me lembrava - eram apenas breves disputas por território, onde meu oponente sempre saía recuado, como se visse um estúpido cachorro.

Nunca me perguntei o porquê. Era conveniente. Eu também não queria interagir.

Algo neles… me repugnava de certa forma.

Na realidade, foi por observação que notei o quanto me pareciam débeis. Não era difícil encontrar gatos frágeis, magros e de pelos que por algum motivo se tornavam lentamente brancos.

E isso acontecia com todos - até os humanos, obviamente.

Os filhotes cresciam até ficarem fortes, então esbranquiçavam e enfraqueciam até nunca mais abrirem os olhos. Eles procriavam, tinham filhotes, e esses filhotes então cresciam e envelheciam após ter seus próprios filhotes.

Era um ciclo ao qual eu não pertencia, e aos poucos os demais gatos foram percebendo isso, a ponto da rejeição total.

Eu observei os netos dos filhotes de algum outro filhote que vi nascer, morrerem.

Vi que de certa forma, os humanos pareciam estar em constante mudança, sempre tendo o prazer de se modificar lentamente.

Vaguei o máximo que podia. Sob o prazer de ter a mim mesmo sob o sol.

E nunca ganhei um único fio de pelo branco.

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